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Quase Ausente
Blake Pierce


“Uma obra-prima de suspense e mistério. Pierce fez um trabalho magnífico criando personagens com lados psicológicos tão bem descritos que nos fazem sentir dentro de suas mentes, acompanhando seus medos e celebrando seu sucesso. Cheio de reviravoltas, este livro vai lhe manter acordado até que você chegue à última página.”--Books and Movie Reviews, Roberto Mattos (sobre Sem Pistas)QUASE AUSENTE (A AU PAIR—LIVRO UM) é o romance de estreia na nova série de thriller psicológico do autor best-sellers Blake Pierce, cujo sucesso número 1 SEM PISTAS recebeu mais de 1.000 avaliações de cinco estrelas.Quando a jovem de 23 anos Cassandra Vale aceita seu primeiro emprego como au pair, ela se encontra postada com uma família rica em uma propriedade rural fora de Paris, e tudo parece bom demais para ser verdade. Mas logo ela descobre que por trás dos portões dourados se esconde uma família disfuncional, um casamento distorcido, crianças problemáticas e segredos sombrios demais para serem expostos. Cassandra está convencida de que finalmente encontrou um recomeço quando ela aceita o emprego como au pair no bucólico interior francês. Um pouco além dos limites da cidade de Paris, a mansão Dubois é uma grande relíquia do passado, e seus ocupantes a família perfeita. É a fuga que Cassandra precisa – até que ela desvenda segredos escuros que provam que as coisas não são tão glamorosas como parecem.  Debaixo da opulência se esconde uma rede sombria de maldade, algo que para Cassandra é muito familiar, desencadeando sonhos de seu próprio passado violento e atormentado, do qual ela foge desesperadamente. E quando um assassinato medonho despedaça a casa, ele ameaça derrubar também sua própria psique frágil. Um mistério fascinante com personagens complexos, camadas de segredos, reviravoltas dramáticas e suspense de acelerar o coração, QUASE AUSENTE é o livro UM em uma série de suspense psicológico que vai fazer você virar as páginas até tarde da noite. O Livro DOIS – QUASE PERDIDA – está disponível em pré-venda!







Q U A S E A U S E N T E



(A AU PAIR — LIVRO UM)



B L A K E P I E R C E



Tradução por Thais Souza


Blake Pierce



Blake Pierce Г© o autor da sГ©rie de enigmas RILEY PAGE, com doze livros (com outros a caminho). Blake Pierce tambГ©m Г© o autor da sГ©rie de enigmas MACKENZIE WHITE, composta por oito livros (com outros a caminho); da sГ©rie AVERY BLACK, composta por seis livros (com outros a caminho), da sГ©rie KERI LOCKE, composta por cinco livros (com outros a caminho); da sГ©rie de enigmas PRIMГ“RDIOS DE RILEY PAIGE, composta de dois livros (com outros a caminho); e da sГ©rie de enigmas KATE WISE, composta por dois livros (com outros a caminho).



Como um ГЎvido leitor e fГЈ de longa data do gГЄnero de suspense, Blake adora ouvir seus leitores, por favor, fique Г  vontade para visitar o site www.blakepierceauthor.com para saber mais a seu respeito e tambГ©m fazer contato.










Copyright © 2019 por Blake Pierce. Todos os direitos reservados. Salvo disposição em contrário prevista na Lei de Direitos Autorais dos EUA de 1976, nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, distribuída ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, ou armazenada em um banco de dados ou sistema de recuperação, sem a autorização prévia da autora. Este e-book é licenciado apenas para seu prazer pessoal. Este e-book não pode ser revendido ou dado a outras pessoas. Se você gostaria de compartilhar este e-book com outra pessoa, favor comprar uma cópia adicional para cada receptor. Se você está lendo este livro e não pagou por ele, ou se este não foi comprado apenas para seu uso pessoal, então, por favor, devolva-o e adquira sua própria cópia. Obrigado por respeitar o trabalho árduo desta autora. Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, empresas, organizações, lugares, eventos e incidentes são produto da imaginação da autora ou usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência. Imagem da capa Copyright cactus_camera, usada sob licença da Shutterstock.com.


LIVROS DE BLAKE PIERCE



A AU PAIR

QUASE AUSENTE (Livro #1)

QUASE PERDIDA (Livro #2)

QUASE MORTA (Livro #3)



SÉRIE UM THRILLER PSICOLÓGICO DE JESSIE HUNT

A ESPOSA PERFEITA (Livro #1)

O PRÉDIO PERFEITO (Livro #2)

A CASA PERFEITA (Livro #3)

O SORRISO PERFEITO (Livro #4)



SÉRIE UM MISTÉRIO PSICOLÓGICO DE CHLOE FINE

A PRГ“XIMA PORTA (Livro #1)

A MENTIRA MORA AO LADO (Livro #2)

BECO SEM SAГЌDA (Livro #3)

VIZINHO SILENCIOSO (Livro #4)

VOLTANDO PRA CASA (Livro #5)



SÉRIE UM MISTÉRIO DE KATE WISE

SE ELA SOUBESSE (Livro #1)

SE ELA VISSE (Livro #2)

SE ELA CORRESSE (Livro #3)



SÉRIE OS PRIMÓRDIOS DE RILEY PAIGE

ALVOS A ABATER (Livro #1)

ГЂ ESPERA (Livro #2)

A CORDA DO DIABO (Livro #3)

AMEAÇA NA ESTRADA (Livro #4)



SÉRIE UM MISTÉRIO DE RILEY PAIGE

SEM PISTAS (Livro #1)

ACORRENTADAS (Livro #2)

ARREBATADAS (Livro #3)

ATRAГЌDAS (Livro #4)

PERSEGUIDA (Livro #5)

A CARГЌCIA DA MORTE (Livro #6)

COBIÇADAS (Livro #7)

ESQUECIDAS (Livro #8)

ABATIDOS (Livro #9)

PERDIDAS (Livro #10)

ENTERRADOS (Livro #11)

DESPEDAÇADAS (Livro #12)

SEM SAГЌDA (Livro #13)

ADORMECIDO (Livro #14)



SÉRIE UM ENIGMA DE MACKENZIE WHITE

ANTES QUE ELE MATE (Livro #1)

ANTES QUE ELE VEJA (Livro #2)

ANTES QUE ELE COBICE (Livro #3)

ANTES QUE ELE LEVE (Livro #4)

ANTES QUE ELE PRECISE (Livro #5)

ANTES QUE ELE SINTA (Livro #6)

ANTES QUE ELE PEQUE (Livro #7)

ANTES QUE ELE CACE (Livro #8)



SÉRIE UM MISTÉRIO DE AVERY BLACK

RAZГѓO PARA MATAR (Livro #1)

RAZГѓO PARA CORRER (Livro #2)

RAZГѓO PARA SE ESCONDER (Livro #3)

RAZГѓO PARA TEMER (Livro #4)

RAZГѓO PARA SALVAR (Livro #5)

RAZГѓO PARA SE APAVORAR (Livro #6)



SÉRIE UM MISTÉRIO DE KERI LOCKE

RASTRO DE MORTE (Livro #1)

RASTRO DE UM ASSASSINO (Livro #2)

UM RASTRO DE IMORALIDADE (Livro #3)

UM RASTRO DE CRIMINALIDADE (Livro #4)

UM RASTRO DE ESPERANÇA (Livro #5)


ГЌNDICE



CAPГЌTULO UM (#ua785b345-3b65-5e7d-9c20-c0df03a04cf4)

CAPГЌTULO DOIS (#ud3b85bb7-878e-5609-8a98-d5c785cb0f5c)

CAPГЌTULO TRГЉS (#ue4b24861-d8db-5d66-9bc9-e5e5e236a13d)

CAPГЌTULO QUATRO (#u95d85c97-ac10-5250-8132-ad7c97309fff)

CAPГЌTULO CINCO (#u62a02376-bafe-5bd0-8da6-b28b6dae8572)

CAPГЌTULO SEIS (#u5962cdb7-9558-51fb-beab-e9dcf502f3be)

CAPГЌTULO SETE (#ubb9acbbf-1929-520c-816f-1b149322132c)

CAPГЌTULO OITO (#uca8b58d2-0bc9-5c27-b074-11063505979f)

CAPГЌTULO NOVE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO DEZ (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO ONZE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO DOZE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO TREZE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO QUATORZE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO QUINZE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO DEZESSEIS (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO DEZESSETE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO DEZOITO (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO DEZENOVE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E UM (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E DOIS (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E TRГЉS (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E QUATRO (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E CINCO (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E SEIS (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E SETE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E OITO (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO VINTE E NOVE (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO TRINTA (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO TRINTA E UM (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO TRINTA E DOIS (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO TRINTA E TRГЉS (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO TRINTA E QUATRO (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO TRINTA E CINCO (#litres_trial_promo)

CAPГЌTULO TRINTA E SEIS (#litres_trial_promo)




CAPГЌTULO UM


Cassie Vale, vinte e trГЄs anos, sentava-se na ponta de uma das duas cadeiras plГЎsticas na sala de espera da agГЄncia de au pairs, encarando os pГґsteres e mapas na parede oposta. Bem acima do logotipo brega da Maureen Au Pairs Europeus, havia um pГґster da Torre Eiffel e outro do PortГЈo de Bradenburgo. Um cafГ© em um pГЎtio pavimentado, uma vila pitoresca com vista para um mar azul celeste. Cenas que faziam sonhar, lugares que ela desejava estar.

O escritório da agência era apertado e sufocante. O ar condicionado chacoalhava inutilmente, sem que um respiro de ar saísse da ventilação. Cassie levantou a mão e discretamente secou uma gota de suor escorrendo por sua bochecha. Não sabia por quanto tempo mais poderia aguentar.

A porta do escritório abriu-se de repente e ela pulou, pegando a pasta de documentos na outra cadeira. Mas seu coração despencou ao ver que era apenas mais uma entrevistada saindo, dessa vez uma loira alta e esbelta, exalando toda a confiança que Cassie desejava ter. Ela sorria, satisfeita, segurando um maço de formulários oficiais, e mal olhou para Cassie ao passar.

O estômago de Cassie apertou. Ela baixou o olhar para seus documentos, perguntando-se se também seria bem sucedida, ou se sairia decepcionada e envergonhada. Sabia que sua experiência era inadequada de dar pena, e que não tinha qualquer qualificação apropriada para o cuidado de crianças. Fora rejeitada pela agência de cruzeiros que tinha abordado na semana anterior. Eles disseram que sem experiência não poderiam nem mesmo colocá-la nos registros. Se aqui fosse igual, ela não teria chance.

– Cassandra Vale? Eu sou Maureen. Por favor, entre.

Cassie olhou para cima. Uma mulher grisalha em um terno escuro estava esperando de pГ© na soleira da porta; claramente, ela era a proprietГЎria.

Cassie ficou de pГ© e seus documentos cuidadosamente organizados espirraram para fora da pasta. Juntando tudo, seu rosto em chamas, ela apressou-se para a sala de entrevistas.

Conforme Maureen os folheava com a testa franzida, Cassie começou a cutucar as cutículas com as unhas, depois entrelaçando as mãos, a única forma de evitar esse hábito nervoso.

Tentou respirar profundamente para se acalmar. Disse a si mesma que a decisão dessa mulher não seria seu único passaporte para fora daqui. Havia outros meios de escapar e ter um novo começo. Porém, nesse instante, esse parecia ser o único restante. A empresa de cruzeiros tinha lhe dado um “não”. Ensinar inglês, sua outra ideia, era impossível sem as qualificações certas, e obtê-las era muito caro. Precisaria economizar por mais um ano para ter a esperança de começar, mas agora não tinha o luxo desse tempo. Na semana passada, sua escolha fora arrancada dela.

– Então, Cassandra, você cresceu em Millville, Nova Jersey? Sua família ainda vive lá? – Maureen finalmente perguntou.

– Por favor, me chame de Cassie – ela respondeu. – E não, eles se mudaram. – Cassie apertou suas mãos mais forte, aflita com a direção que a entrevista estava tomando. Não esperava ser questionada sobre sua família em detalhes, mas agora se dava conta de que naturalmente eles precisariam do histórico da vida doméstica dos candidatos, já que os au pairs iriam viver e trabalhar nas casas de seus clientes. Ela teria que pensar rápido, porque apesar de não querer mentir, receava que a verdade fosse prejudicar sua candidatura.

– E sua irmã mais velha? Você diz que ela está trabalhando no exterior?

Para o alívio de Cassie, Maureen tinha seguido para a próxima seção. Ela tinha pensado no que dizer caso fosse solicitada, promovendo a própria causa de um modo que não exigisse detalhes confirmáveis.

– As viagens da minha irmã definitivamente me inspiraram a buscar um trabalho no exterior. Eu sempre quis viver em outro país e eu amo a Europa. Particularmente a França, já que sou bastante fluente no idioma.

– Você estudou?

– Sim, por dois anos, mas eu já tinha familiaridade com o idioma antes disso. Minha mãe cresceu na França e trabalhou como tradutora freelancer de tempos em tempos, quando eu era mais nova, então minha irmã e eu crescemos com um bom entendimento do francês falado.

Maureen fez uma pergunta em francês – O que você espera ganhar no trabalho como au pair?

Cassie ficou satisfeita por ser capaz de responder com fluência. – Aprender mais sobre a vida em outro país, e melhorar minha proficiência de idiomas.

Ela esperava que sua resposta fosse impressionar Maureen, mas ela permaneceu sisuda enquanto terminava de examinar a papelada.

– Você ainda mora em sua casa, Cassie?

De volta Г  famГ­lia dela, de novo... SerГЎ que Maureen suspeitava que ela escondesse algo? Precisaria responder cuidadosamente. Sair de casa aos dezesseis anos, como ela fizera, seria um sinal de alerta para um entrevistador. Por que tГЈo jovem? Havia problemas na casa dela? Ela precisava oferecer uma imagem mais bonita, que aludisse a uma vida familiar feliz e normal.

– Moro sozinha desde os vinte anos – ela disse, sentindo seu rosto ruborizar com a culpa.

– E trabalhando meio período. Vejo que você tem uma referência aqui do Primi? É um restaurante?

– Sim, fui garçonete lá pelos últimos dois anos.

Isso era verdade, felizmente. Antes desse, tinha tido uma variedade de outros empregos, e até mesmo um bico em um bar sujo, porque lutava para pagar sua moradia compartilhada e sua educação à distância. Primi, seu emprego mais recente, fora o mais agradável. A equipe do restaurante tinha sido como a família que ela nunca teve, mas não tinha nenhum futuro ali. Seu salário era baixo e com as gorjetas não era diferente; a atividade comercial naquela parte da cidade era difícil. Ela vinha planejando uma mudança na hora certa, mas quando suas circunstâncias mudaram para pior, isso tinha se tornado urgente.

– Experiência no cuidado de crianças? – Maureen olhou por cima de seus óculos para Cassie, que sentiu seu estômago se retorcer.

– Eu... Eu fui assistente em uma creche por três meses, antes de começar no Primi. A referência está na pasta. Eles me deram treinamento básico em segurança e primeiros socorros, e eu tive meu histórico checado – ela gaguejou, esperando que fosse o suficiente. Fora apenas uma posição temporária, preenchendo o lugar de alguém em licença maternidade. Nunca pensou que poderia ser um trampolim para uma oportunidade futura. – Eu também gerenciei festas infantis no restaurante. Sou muito amigável. Quer dizer, me dou bem com os outros, sou paciente...

Os lábios de Maureen apertaram. – Que pena sua experiência não ser mais recente. Além disso, você não tem nenhuma certificação formal em cuidado de crianças. A maioria das famílias exige qualificações, ou no mínimo mais experiência. Será difícil te alocar com tão pouco.

Cassie olhou para ela fixamente, em desespero. Ela tinha que fazer isso, nГЈo importa o que custasse. A escolha era clara. Partir... Ou ficar presa em um ciclo de violГЄncia que pensara ter escapado para sempre quando saiu de casa.

Os hematomas em seu braço demoraram alguns dias para florescer, definidos em sombras, de modo que ela pudesse ver cada marca dos nós dos dedos onde ele havia a atingido. O namorado dela, Zane, tinha jurado no segundo encontro que a amava e a protegeria, haja o que houvesse.

Quando as marcas repulsivas começaram a aparecer, ela se lembrou, com arrepio na espinha, que tivera machucados quase idênticos no mesmo lugar há dez anos. Primeiro, foi seu braço. Depois, o pescoço e, por fim, o rosto. Também infligidos por um suposto protetor – seu pai.

Ele tinha começado a bater nela aos doze anos, depois que Jacqui, sua irmã mais velha, fugiu de casa. Antes, Jacqui aguentara a força de sua raiva. A presença dela protegia Cassie do pior.

As marcas de Zane ainda estavam lГЎ; levariam um tempo para sumir. Ela vestira mangas compridas para escondГЄ-los durante a entrevista, e estava quente demais no escritГіrio abafado.

– Existe outro lugar que você recomendaria? – ela perguntou a Maureen. – Sei que essa é a melhor agência local, mas poderia sugerir um site online onde eu poderia me candidatar?

– Não posso recomendar um site – Maureen disse com firmeza. – Muitos candidatos tiveram experiências ruins. Muitos acabaram em situações onde as horas de trabalho não eram aderidas, ou foram exigidos trabalhos de limpeza além de cuidar das crianças. Isso é injusto com todos os envolvidos. Também ouvi falar de au pairs sendo abusadas de outras formas. Então, não.

– Por favor, não há alguém nos seus registros que talvez me considere? Sou uma trabalhadora árdua e estou disposta a aprender, posso me encaixar facilmente. Por favor, me dê uma chance.

Maureen fez silГЄncio por um momento, depois digitou em seu teclado, franzindo o cenho.

– Sua família… Como eles se sentiriam se você viajasse por um ano? Você tem namorado, alguém que está deixando para trás?

– Eu terminei com meu namorado recentemente. E sempre fui muito independente, minha família sabe disso.

Zane tinha chorado e se desculpado depois de socar seu braço, mas ela não tinha cedido, em vez disso pensando no aviso de sua irmã, oferecido há tempos e desde então se provado verdadeiro: “Nenhum homem bate em uma mulher apenas uma vez”.

Ela tinha feito suas malas e mudado para a casa de uma amiga. Para evitá-lo, tinha bloqueado suas ligações e mudado o horário de seus turnos no trabalho. Esperava que ele aceitasse sua decisão e a deixasse em paz, mesmo no fundo sabendo que ele não faria isso. A separação deveria ter sido ideia dele, não dela. O ego dele não permitiria rejeição.

Ele já tinha estado no restaurante procurando por ela. O gerente havia lhe dito que ela estava de licença por duas semanas e tinha ido para a Flórida. Aquilo lhe comprara algum tempo... Mas ela sabia que ele estaria contando os dias. Mais uma semana e estaria caçando-a de novo.

Os Estados Unidos pareciam pequeno demais para escapar dele. Ela queria um oceano – bem grande – entre eles. Porque o pior de tudo era o medo de fraquejar, perdoá-lo, dar outra chance.

Maureen terminou de checar a papelada e passou a fazer algumas perguntas padrГЈo que Cassie julgou serem fГЎceis. Seus hobbies, medicamentos crГґnicos, necessidades alimentares ou alergias.

– Não tenho nenhuma exigência alimentar, nem alergias. E nenhum problema de saúde.

Cassie esperava que seus remГ©dios de ansiedade nГЈo contassem como medicamentos crГґnicos. Seria melhor nГЈo mencionГЎ-los, decidiu, jГЎ que estava certa de que eles seriam um enorme sinal de alerta.

Maureen rabiscou uma anotação em sua pasta.

Então, perguntou. – O que você faria se as crianças sob os seus cuidados fossem malcriadas ou desobedientes? Como você lidaria com isso?

Cassie puxou uma respiração profunda.

– Bem, não acredito que exista uma resposta para todas as situações. Se uma criança foi desobediente porque correu em direção a uma rua perigosa, isso exigiria uma abordagem diferente de quando ela não quer comer legumes. No primeiro caso, a segurança vem primeiro, tirando a criança de perigo o mais rápido possível. No segundo, eu argumentaria e negociaria... Por que você não gosta? É a aparência ou o sabor? Estaria disposto a dar uma mordida? Afinal, todos nós passamos por fases com a comida e geralmente as superamos.

Maureen pareceu satisfeita, mas as prГіximas perguntas eram mais difГ­ceis.

– O que você fará caso as crianças mintam para você? Por exemplo, se disserem que têm permissão para fazer algo que os pais proibiram?

– Eu diria que não é permitido, e os contaria o motivo, se eu soubesse. Sugeriria que falássemos com os pais juntos e discutíssemos as regras como uma família, para ajudá-los a entender por que isso é importante – Cassie sentiu como se estivesse andando na corda bamba, esperando que suas respostas fossem aceitáveis.

– Como você reagiria, Cassie, se testemunhasse uma briga doméstica? Morando na casa de uma família, haverá momentos em que as pessoas não se dão bem.

Cassie fechou os olhos por um momento, afastando as memórias desencadeadas pelas palavras de Maureen. Gritos, vidros quebrando, os vizinhos berrando com raiva. Uma cadeira firmada sob a maçaneta da porta de seu quarto, a única proteção frágil que ela podia encontrar.

Mas quando estava prestes a falar que se trancaria com as crianças em um cômodo seguro e ligaria para a polícia imediatamente, percebeu que Maureen não podia estar se referindo a este tipo de briga. Por que estaria? Ela obviamente estava pensando em uma discussão, em palavras vociferadas em irritação ou berradas em raiva; atrito temporário ao invés de destruição terminal.

– Eu tentaria manter as crianças fora do alcance – ela disse, escolhendo suas palavras cuidadosamente. – Eu respeitaria a privacidade dos pais, ficando bem longe. Afinal de contas, brigas fazem parte da vida e uma au pair não tem o direito de tomar partido ou se envolver.

Agora, finalmente, ela ganhou um sorriso.

– Uma boa resposta – Maureen disse. Ela checou o computador novamente e assentiu, como se confirmando uma decisão que tinha tomado.

– Só tem uma possibilidade aqui que eu poderia te oferecer. Uma posição com uma família francesa – ela disse, e o coração de Cassie saltou, apenas para se espatifar quando Maureen adicionou – A última au pair foi embora inesperadamente depois de um mês e eles tiveram dificuldades em encontrar uma substituta.

Cassie mordeu o lГЎbio. Se a au pair se demitiu ou fora demitida, ela nГЈo sabia, mas nГЈo podia admitir que o mesmo acontecesse com ela. Com a taxa da agГЄncia e a passagem aГ©rea, estava arando todas as suas economias nessa empreitada. NГЈo importa como, teria que fazer dar certo.

Maureen adicionou. – Eles são uma família rica com uma bela casa. Não é na cidade. É uma mansão no campo, em uma grande propriedade. Tem um pomar e um pequeno vinhedo – não comercial – e também cavalos, embora conhecimento equestre não seja uma exigência do trabalho. No entanto, você terá a oportunidade de aprender a montar quando estiver lá, se quiser.

– Eu adoraria – Cassie disse. O apelo do interior francês, e a promessa de cavalos, faziam o risco parecer valer ainda mais a pena. E uma família rica certamente significava melhor segurança no emprego. Talvez a última au pair não estivesse disposta a tentar.

Maureen ajustou os Гіculos antes de tomar nota no formulГЎrio de Cassie.

– Agora, devo enfatizar que nem todas as famílias são fáceis de trabalhar. Algumas são muito desafiadoras, outras são sinceramente difíceis. O sucesso do trabalho repousará nos seus ombros.

– Farei o meu melhor para ser bem sucedida.

– Desistir de uma atribuição antes do seu ano acabar é inaceitável. Vai incorrer em uma taxa de cancelamento substancial e você nunca mais trabalhará conosco. Os detalhes estão estipulados no contrato – Maureen bateu sua caneta na página.

– Não posso imaginar isso acontecendo – Cassie respondeu, com determinação.

– Bom. Então, o último ponto que temos que discutir é o prazo.

– Sim. Em quanto tempo posso ir? – Cassie perguntou, sua ansiedade inundando outra vez enquanto ela imaginava por quanto tempo ela ainda precisaria se esquivar.

– Geralmente leva cerca de seis semanas, mas a solicitação dessa família é muito urgente, então vamos acelerar. Se as coisas se moverem conforme o esperado, você vai voar para lá dentro de uma semana. Isso é aceitável?

– É, é perfeito – ela gaguejou. – Por favor, eu aceito a posição. Farei o que for preciso para dar certo, e não vou te decepcionar.

A mulher a encarou de volta longamente, como se a avaliasse uma Гєltima vez.

– Não decepcione – ela disse.




CAPГЌTULO DOIS


Aeroportos eram sГі despedidas, Cassie pensou. Partidas apressadas, o ambiente impessoal roubando as palavras que vocГЄ realmente queria dizer e o tempo para dizГЄ-las corretamente.

Ela insistiu para que a amiga que havia dado a ela uma carona até o aeroporto apenas a deixasse lá ao invés de entrar com ela. Um abraço antes de pular para fora do carro era mais rápido e fácil. Melhor do que café caro e conversas desconfortáveis que iam secando conforme a hora da partida chegava. Afinal, ela viajaria sozinha, deixando todos que conhecia para trás. Fazia sentido começar a jornada mais cedo do que mais tarde.

Ao empurrar o carrinho de bagagens para o terminal, sentia uma sensação de alívio pelas metas que tinha realizado até agora. Ela tinha conseguido o trabalho – a meta mais importante de todas. Tinha pagado o voo e a taxa da agência, seu visto tinha sido acelerado, e estava no check-in a tempo. Seus pertences tinham sido empacotados conforme a lista fornecida – estava grata pela mochila azul-claro com o logo da “Maureen Au Pairs” que recebera, pois não haveria espaço em sua mala para todas as suas roupas.

De agora atГ© quando pousasse em Paris, estava certa de que tudo correria suavemente.

Então, ela parou, seu coração martelando, quando o viu.

Ele estava de pГ© prГіximo Г  entrada do terminal, com as costas na parede e os polegares enganchados nos bolsos da jaqueta de couro que ela lhe dera. Sua altura, seu cabelo escuro e espetado, e seu maxilar agressivo o tornavam fГЎcil de localizar enquanto sondava a multidГЈo.

Zane.

Ele deve ter descoberto que ela partiria nesse horário. Ela tinha ouvido de vários amigos que ele tinha ligado, perguntando onde ela estava e checando a história da Flórida. Zane podia ser manipulador, e nem todos sabiam da situação dela. Algum inocente deve ter contado a verdade.

Antes que ele pudesse olhar em sua direção, ela girou o carrinho, puxando o capuz de seu agasalho sobre a cabeça, escondendo seus ondulados cabelos castanho-avermelhados. Ela apressou-se para o outro lado, conduzindo o carrinho para trás de um pilar, fora da vista dele.

O balcГЈo de check-in da Air France estava na outra extremidade do terminal. NГЈo havia um modo de passar por ele sem que ele a visse.

Pense, Cassie, ela disse a si mesma. No passado, Zane havia a elogiado por sua habilidade de elaborar planos rápidos em situações complicadas. – Você tem raciocínio rápido – ele tinha dito. Aquilo havia sido no início do relacionamento deles. No fim, ele estava acusando-a amargamente de ser sorrateira e dissimulada, espertinha demais para o próprio bem.

Hora de ser espertinha demais, então. Ela tomou uma respiração funda, esperando por ideias. Zane estava de pé perto da entrada do terminal. Por quê? Teria sido mais fácil esperar ao lado do balcão de check-in, onde ele teria certeza de detectá-la. Então, isso significava que ele não sabia com qual companhia ela voaria. De quem quer que ele tenha recebido a informação, a pessoa também não sabia, ou não tinha dito. Se ela pudesse encontrar outro caminho até o balcão, poderia ser capaz de fazer o check-in antes de ele procurá-la.

Cassie descarregou sua bagagem, colocando a mochila pesada nos ombros e arrastando sua mala atrás de si. Havia uma escada rolante na entrada do prédio – passara por ela no caminho. Se subisse até o andar de cima, esperava encontrar outra descendo, ou um elevador, do outro lado.

Abandonando o carrinho de bagagem, apressou-se de volta pelo caminho que tinha feito e subiu a escada rolante. A que ficava do outro lado estava quebrada, entГЈo ela desceu pelos degraus Г­ngremes, arrastando sua mala pesada atrГЎs de si. O balcГЈo de check-in da Air France estava a uma curta distГўncia, mas, para seu desГўnimo, jГЎ havia uma fila longa e vagarosa.

Puxando o capuz cinza mais para frente, juntou-se à fila, pegou um livro de sua bolsa e começou a ler. Não estava absorvendo as palavras e o capuz estava a sufocando. Queria arrancá-lo, refrescar a transpiração em seu pescoço. No entanto, não podia arriscar, não quando seu cabelo brilhante se tornaria instantaneamente visível. Melhor continuar escondida.

Mas, entГЈo, uma mГЈo firme bateu no ombro dela.

Ela virou-se, arquejando, e se viu encarando os olhos surpresos de uma loira alta que tinha mais ou menos a sua idade.

– Desculpe te assustar – ela disse. – Sou Jess. Notei sua mochila e pensei que deveria falar oi.

– Ah. Sim. Maureen Au Pairs.

– Você está voando para uma atribuição? – Jess perguntou.

– Estou.

– Eu também. Quer ver se a companhia consegue assentos juntos? Podemos solicitar no check-in.

Enquanto Jess conversava sobre o clima na França, Cassie olhou com nervosismo pelo terminal. Sabia que Zane não desistiria facilmente – não depois de ter dirigido até aqui. Ele iria querer algo dela – um pedido de desculpas, um compromisso. Ele a forçaria a ir com ele tomar um “drink de despedida” e começaria uma briga. Ele não se importaria se ela chegasse à França com novos machucados... Ou perdesse seu voo de vez.

E, então, ela o viu. Ele vinha em sua direção, a alguns guichês de distância, sondando cada fila cuidadosamente enquanto procurava.

Ela olhou para o outro lado rapidamente, para o caso de ele sentir seu olhar fixo. Com uma centelha de esperança, viu que elas tinham alcançado o começo da fila.

– Senhora, você vai precisar tirar isso – a funcionária do check-in disse, apontando para o capuz de Cassie.

Consentindo relutantemente, ela o empurrou para trГЎs.

– Ei, Cass! – ela ouviu Zane gritar as palavras.

Cassie congelou, sabendo que responder significaria um desastre.

Desajeitada e nervosa, deixou cair seu passaporte e tateou por ele, sua mochila pesada inclinando-se sobre sua cabeça.

Outro grito, e dessa vez ela olhou para trГЎs.

Ele a viu e abriu caminho pela fila, cotovelando as pessoas para os lados. Os passageiros estavam irritados; ela podia ouvir vozes elevadas. Zane estava causando uma comoção.

– Gostaríamos de sentar juntas, se possível – Jess disse à funcionária, e Cassie mordeu o lábio com o atraso adicional.

Zane gritou novamente, e ela se deu conta com uma sensação de mal estar que ele a alcançaria em alguns momentos. Ele ligaria seu charme e imploraria por uma chance de conversar, assegurando a Cassie que levaria apenas um minuto para dizer o que precisava em particular. Seu objetivo, ela sabia por experiência, seria deixá-la afastada e sozinha. E, então, o charme desapareceria.

– Quem é esse cara? – Jess perguntou com curiosidade. – Ele está procurando você?

– Ele é meu ex-namorado – Cassie murmurou. – Estou tentando evitá-lo. Eu não quero que ele cause problemas antes de eu partir.

– Mas ele já está causando problemas! – Jess rodopiou, irada. – Segurança! – ela gritou. – Ajudem! Alguém pare aquele homem.

Galvanizado pelos clamores de Jess, um dos passageiros agarrou a jaqueta de Zane enquanto ele passava. Ele escorregou nos azulejos, braços se agitando, derrubando um dos postes ao cair.

– Segurem-no! – Jess apelou. – Segurança, rápido!

Com uma onda de alívio, Cassie viu que a segurança tinha, de fato, sido alertada. Dois policiais aeroportuários se apressavam para a fila. Eles chegariam a tempo, antes que Zane pudesse chegar até ela, ou sequer fugir.

– Vim dizer adeus à minha namorada, policiais – Zane tagarelou, mas suas tentativas de charme foram desperdiçadas com a dupla. – Cassie – ele chamou enquanto o policial mais alto agarrava seu braço. – Au revoir.

Relutantemente, ela se virou para encarГЎ-lo.

– Au revoir. Não é adeus – ele gritou conforme os policiais marchavam com ele para longe. – Vou te ver de novo. Mais cedo do que você pensa. Melhor tomar cuidado.

Ela reconheceu o aviso nas últimas palavras de Zane – mas, por agora, eram ameaças vazias.

– Muito obrigada – ela disse a Jess, completamente tomada por gratidão pela ação corajosa.

– Eu também tive um namorado tóxico – Jess simpatizou. – Sei como eles podem ser possessivos, grudam como maldito velcro. Foi um prazer poder detê-lo.

– Vamos passar pelo controle de passaporte antes que ele consiga voltar. Eu te devo uma bebida. O que você gostaria – café, cerveja ou vinho?

– Vinho, com certeza – Jess disse enquanto atravessavam os portões.



*



– Então, para onde você vai, na França? – Cassie perguntou depois de pedirem o vinho.

– Dessa vez, vou para uma família em Versalhes. Perto de onde fica o palácio, acredito. Espero ter a chance de visitá-lo quando tiver um dia de folga.

– Você disse “dessa vez”? Já esteve em uma atribuição antes?

– Estive, mas não deu certo – Jess derrubou um cubo de gelo em seu copo. – A família era terrível. Na realidade, por conta deles fiquei convencida em não usar a Maureen Au Pairs nunca mais. Fui com uma agência diferente dessa vez. Mas não se preocupe – ela adicionou, apressada. – Tenho certeza que você vai estar bem. Maureen deve ter alguns clientes bons em seus registros.

A boca de Cassie parecia repentinamente seca. Ela tomou um grande gole de vinho.

– Pensei que ela tivesse boa reputação. Quer dizer, o slogan dela é “A Agência Europeia Número Um”.

Jess riu. – Bem, isso é apenas marketing. Outras pessoas me disseram o contrário.

– O que aconteceu com você? – Cassie perguntou. – Por favor, me conte.

– Bem, a atribuição parecia legal, apesar de algumas perguntas na entrevista de Maureen terem me preocupado. Foram tão estranhas que comecei a me perguntar se haviam problemas com a família, porque nenhum dos meus amigos au pairs tiveram perguntas similares durante a entrevista deles. E quando eu cheguei... Bem, a situação não era conforme o anunciado.

– Por que não? – Cassie sentia-se fria por dentro. Achara as perguntas de Maureen estranhas também. Presumira na hora que todos os candidatos respondessem às mesmas questões; que era um teste de suas habilidades. E talvez fosse... Mas não pelas razões que imaginou.

– A família era muito tóxica – Jess disse. – Eles eram desrespeitosos e me rebaixavam. O trabalho que eu tinha que fazer estava fora do escopo do emprego; eles não se importavam e se recusavam a mudar. E quando eu disse que ia embora, foi quando realmente virou uma zona de guerra.

Cassie mordeu o lábio. Ela tinha tido aquela experiência na infância. Lembrava-se das vozes elevadas atrás de portas fechadas, discussões murmuradas no carro, uma sensação de tensão em uma corda-bamba. Sempre tinha se perguntado o que sua mãe – tão quieta, subjugada, abatida – poderia possivelmente ter encontrado para discutir com seu pai bombástico e agressivo. Foi só após a morte de sua mãe em um acidente de carro que ela tinha percebido que as brigas eram para manter a paz, lidar com a situação, protegendo Cassie e sua irmã da agressão que acendia de forma imprevisível e sem um bom motivo. Sem a presença de sua mãe, o conflito fervilhante tinha entrado em ebulição, virando uma guerra completa.

Ela havia imaginado que um dos benefícios de ser uma au pair seria poder se tornar parte da família feliz que ela nunca tivera. Agora, temia que o oposto fosse verdade. Nunca fora capaz de manter a paz no lar. Seria capaz de lidar com uma situação volátil, como sua mãe fizera?

– Estou preocupada com a minha família – Cassie confessou. – Tive perguntas estranhas durante minha entrevista também, e a au pair anterior foi embora mais cedo. O que vai acontecer se eu tiver que fazer o mesmo? Não quero permanecer se as coisas ficarem desagradáveis.

– Não vá embora a não ser que seja uma emergência – Jess avisou. – Causa um conflito enorme, e você sangra dinheiro; você vai estar sujeita a um monte de despesas adicionais. Isso quase me fez desistir de tentar de novo. Fui cuidadosa em aceitar essa atribuição. Eu não teria condições de pagar se meu pai não tivesse bancado tudo dessa vez.

Ela baixou sua taça de vinho.

– Vamos para o portão? Estamos na parte traseira do avião, então vamos estar no primeiro grupo a embarcar.

A empolgação para embarcar no avião distraiu Cassie do que Jess tinha dito e, uma vez que estavam sentadas, conversaram sobre outros tópicos. Quando o avião decolou, ela sentiu seu ânimo se elevar com ele, porque tinha conseguido. Tinha saído do país, escapado de Zane, e estava sendo transportada pelo ar rumo a um novo começo em uma terra estrangeira.

Foi apenas após o jantar, ao começar a pensar mais afundo sobre os detalhes de sua atribuição e os avisos de Jess, que seus receios voltaram novamente.

Toda famГ­lia podia ser ruim, certo?

Porém, e se uma agência em particular tivesse uma reputação por aceitar famílias difíceis? Bem, então, as chances seriam maiores.

Cassie tentou ler um pouco, mas descobriu que nГЈo estava se concentrando nas palavras e seus pensamentos estavam acelerados enquanto se preocupava com o que estava pela frente.

Ela olhou para Jess. Depois de se assegurar que ela estava absorvida assistindo ao seu filme, Cassie discretamente pegou o frasco de comprimidos de sua bolsa e engoliu um com o resto de sua Coca diet. Se nГЈo conseguia ler, poderia ao menos tentar dormir. Apagou sua luz e reclinou seu assento.



*



Cassie encontrou-se em seu quarto frio no andar de cima, comprimida debaixo de sua cama com as costas contra a parede ГЎspera e gelada.

Risos bГЄbados, pancadas e gritos vinham do andar de baixo; folia que a qualquer momento se tornaria violenta. Seus ouvidos se esticavam, esperando por vidros quebrando. Ela reconheceu a voz de seu pai e de sua namorada mais recente, Deena. Havia ao menos quatro outras pessoas lГЎ embaixo, talvez mais.

E entГЈo, acima dos gritos, ela ouviu as tГЎbuas do chГЈo rangendo conforme passos pesados subiam as escadas.

– Ei, queridinha – uma voz profunda sussurrou e seu coração de 12 anos se encolheu em terror. – Você está ai, garotinha?

Ela apertou os olhos fechados, dizendo a si mesma que era apenas um pesadelo, que estava segura em sua cama e os estranhos no andar de baixo estavam se preparando para ir embora.

A porta rangeu ao abrir devagar e, na luz derramada pelo luar, viu uma bota pesada aparecer.

O pГ© pisou atravГ©s do quarto.

– Ei, garotinha – um sussurro rouco. – Vim dizer olá.

Ela fechou seus olhos, rezando para que ele não ouvisse suas respirações rápidas.

O sussurro dos tecidos enquanto ele puxou as cobertas... E entГЈo o grunhido de surpresa ao ver o travesseiro e casaco que ela havia embrulhado por debaixo.

– Saiu por aí – ele tinha resmungado. Ela imaginou que ele estivesse olhando para as cortinas encardidas esvoaçando com a brisa, o cano de esgoto insinuando uma rota de fuga precária. Da próxima vez, ela encontraria a coragem para descer; não podia ser pior do que se esconder aqui.

As botas recuaram para fora de sua visão. Uma erupção de música veio do andar de baixo, seguida por uma discussão aos berros.

O quarto ficou quieto.

Ela estava tremendo; se fosse passar a noite se escondendo, precisaria de uma coberta. Era melhor pegГЎ-la agora. Ela relaxou para longe da parede.

Mas conforme ela deslizou a mГЈo para fora, uma mГЈo grosseira a apanhou.

– Então você está aí!

Ele lhe puxou para fora – ela agarrou a estrutura da cama, ferro gelado raspando suas mãos, e começou a gritar. Seu choro aterrorizado preencheu o quarto, preencheu a casa...

E ela acordou, suada, gritando, ouvindo a voz aflita de Jess. – Ei, Cassie, você está bem?

Os tentáculos do pesadelo ainda estavam à espreita, querendo atraí-la de volta. Podia sentir os arranhões doloridos em seu braço onde a estrutura enferrujada da cama a cortara. Pressionou os dedos ali, aliviada por encontrar sua pele intacta. Arregalando os olhos, acendeu a luz sobre a cabeça para afugentar a escuridão.

– Estou bem. Sonho ruim, só isso.

– Quer um pouco de água? Chá? Posso chamar a comissária de bordo.

Cassie estava prestes a recusar educadamente, mas lembrou, em seguida, que deveria tomar seus remГ©dios outra vez. Se um comprimido nГЈo funcionou, dois geralmente impediriam os pesadelos de voltarem a ocorrer.

– Eu adoraria um pouco de água. Obrigada – ela disse.

Ela esperou atГ© que Jess nГЈo estivesse olhando e rapidamente engoliu outro comprimido.

NГЈo tentou dormir outra vez.



*



Durante a descida da aeronave, trocou números de telefone com Jess – e, por precaução, anotou o nome e o endereço da família para quem Jess trabalharia. Cassie disse a si mesma que era como uma apólice de seguro que, com sorte, se ela tivesse, não precisaria usar. Prometeram uma à outra que, na primeira chance que tivessem, visitariam o Palácio de Versalhes juntas.

Enquanto taxiavam para o Aeroporto Charles de Gaulle, Jess deu uma risada animada. Rapidamente, mostrou a Cassie a selfie que sua família havia tirado enquanto esperavam por ela. O casal atraente e as duas crianças sorriam, segurando uma placa com o nome de Jess.

Cassie não recebeu nenhuma mensagem – Maureen tinha apenas dito que encontrariam com ela no aeroporto. A caminhada até o controle de passaporte parecia interminável. Ela estava cercada pelo burburinho de conversas em uma variedade de idiomas diferentes. Virando-se para o casal caminhando ao seu lado, percebeu quão pouco do francês falado era capaz de entender. A realidade era tão diferente de aulas da escola e fitas de idiomas. Sentia-se assustada, solitária e com sono atrasado, e de repente tomou consciência de quão amassadas e suadas suas roupas estavam comparadas às dos viajantes franceses elegantemente vestidos ao seu redor.

Assim que pegou suas malas, correu para o banheiro, colocou uma blusa nova e arrumou seu cabelo. Ainda não se sentia pronta para conhecer sua família e não tinha ideia de quem estaria a esperando. Maureen dissera que a casa ficava a mais de uma hora de carro do aeroporto, então talvez as crianças não tivessem vindo. Ela não deveria procurar por uma família grande. Qualquer rosto amigável bastaria.

PorГ©m, no mar de pessoas a observando, nГЈo viu nenhum reconhecimento, mesmo tendo colocado a mochila da Maureen Au Pairs em destaque no carrinho de bagagem. Andou devagar do portГЈo atГ© o saguГЈo de desembarque, observando ansiosa para que alguГ©m a visse, acenasse ou chamasse por ela.

Mas todos lГЎ pareciam estar esperando por outra pessoa.

Agarrando o puxador do carrinho com as mãos frias, Cassie ziguezagueou pelo saguão de desembarque, procurando em vão enquanto a multidão gradualmente se dispersava. Maureen não tinha falado sobre o que fazer caso isso acontecesse. Será que deveria ligar para alguém? Será que seu telefone sequer funcionaria na França?

E entГЈo, ao dar uma Гєltima volta frenГ©tica pelo piso, ela o notou.

“CASSANDRA VALE.”

Uma pequena placa, segurada por um homem magro de cabelo escuro, jaqueta preta e jeans.

De pГ© prГіximo Г  parede, absorvido em seu telefone, ele nem estava olhando para ela.

Ela se aproximou de forma incerta.

– Oi, sou Cassie. Você é...? – ela perguntou, as palavras parando ao perceber que ela não tinha ideia de quem ele poderia ser.

– Sim – ele disse em inglês com um sotaque forte. – Venha por aqui.

Ela estava prestes a se apresentar apropriadamente, dizer as palavras que tinha ensaiado sobre como estava empolgada por se juntar Г  famГ­lia, quando viu o cartГЈo laminado na jaqueta dele. Ele era apenas um motorista de tГЎxi; o cartГЈo era o seu passe oficial do aeroporto.

A famГ­lia nГЈo tinha sequer se incomodado em vir conhecГЄ-la.




CAPГЌTULO TRГЉS


A paisagem urbana de Paris foi de desdobrando enquanto Cassie observava. Altos apartamentos e blocos industriais escuros gradualmente deram lugar a subГєrbios arborizados. A tarde estava fria e cinzenta, com a chuva assoprando de forma irregular.

Ela ergueu-se para ver as placas de sinalização enquanto passavam. Seguiam em direção à Saint Maur, e por um tempo ela pensou que aquele poderia ser seu destino, mas o motorista passou a saída e continuou pela estrada, saindo da cidade.

– Está longe? – ela perguntou, tentando puxar conversa, mas ele grunhiu de forma descomprometida e ligou o rádio.

A chuva batia nas janelas e o vidro estava frio contra sua bochecha. Desejou ter tirado a jaqueta grossa do porta-malas. E estava faminta – não havia comido café da manhã e não tivera a oportunidade de comprar comida desde então.

Depois de mais de meia-hora, chegaram a campo aberto e dirigiram ao longo do rio Marne, onde barcos de cores vivas forneciam um respingo de cor ao acinzentado, e algumas pessoas, envoltas em capas de chuvas, caminhavam debaixo das ГЎrvores. Alguns dos galhos das ГЎrvores jГЎ estavam despidos, outros ainda cobertos de folhas ouro-avermelhadas.

– Está muito frio hoje, não? – ela observou, tentando conversar com o motorista outra vez.

A única resposta foi um murmurado “Oui” – mas ele ao menos ligou o aquecedor, e ela parou de tremer. Encasulada no calor, caiu em um cochilo inquieto enquanto os quilômetros voavam.

Uma freada brusca e um toque de buzina a assustou, despertando-a. O motorista estava forçando caminho para passar por um caminhão estacionário, virando para sair da rodovia e entrar em uma estrada estreita e ladeada por árvores. A chuva havia parado e, na luz baixa do início de noite, a paisagem de outono era linda. Cassie olhou pela janela, absorvendo a paisagem em movimento e a tapeçaria em retalhos dos campos intercalados com enormes florestas escuras. Passaram por uma vinícola, as fileiras de uvas arrumadas encurvando-se em torno da encosta.

Reduzindo a velocidade, o motorista passou por um vilarejo. Casas de pedra pálidas com janelas abobadadas, íngremes e com telhados de azulejos, ladeavam a estrada. Além, viu campos abertos, e vislumbrou um canal ladeado por salgueiros-chorões enquanto cruzavam uma ponte de pedra. O alto pináculo da igreja atraiu seu olhar e ela se perguntou quão antiga era a construção.

Deveriam estar perto do castelo, ela cogitou, talvez até mesmo em seu bairro local. Então, mudou de ideia ao deixarem o vilarejo para trás, adentrando mais nas colinas, até que estivesse totalmente desorientada e perdesse o alto pináculo de vista. Não esperava que o castelo fosse tão remoto. Ouviu o GPS notificar “sinal perdido” e o motorista exclamar em irritação, pegando seu telefone e olhando de perto para o mapa enquanto dirigia.

Em seguida, após virarem à direita, entre portões altos, Cassie sentou-se ereta, vendo a longa entrada de cascalhos. Adiante, alto e elegante, estava o castelo, o sol poente realçando suas paredes de pedra.

Pneus trituraram na pedra quando o carro parou do lado de fora da entrada alta e imponente, e ela sentiu uma punhalada nos nervos. Essa casa era muito maior do que imaginara. Era como um palГЎcio, coroado com altas chaminГ©s e torres ornamentadas. Contou dezoito janelas, com trabalhos em pedra e detalhes elaborados, nos dois andares de sua fachada imponente. A casa em si tinha vista para um jardim, com sebes imaculadamente podadas e caminhos pavimentados.

Como ela poderia se relacionar com a famГ­lia lГЎ dentro, que vivia em tanto esplendor, quando ela tinha vindo do nada?

Percebeu que o motorista batia os dedos impacientemente no volante – ele claramente não a ajudaria com as malas. Rapidamente, ela desceu.

O vento implacГЎvel a gelou imediatamente, e ela se apressou atГ© o porta-malas, tirando sua mala e atravessando o cascalho atГ© o abrigo do ГЎtrio, onde ela ergueu o zГ­per de sua jaqueta.

NГЈo havia campainha na pesada porta de madeira, apenas uma grande aldrava de ferro que estava gelada em sua mГЈo. O som era surpreendentemente alto, e alguns momentos depois Cassie ouviu passos leves.

A porta se abriu e ela ficou de frente com uma empregada de uniforme escuro, cabelo puxado para trГЎs em um rabo de cavalo apertado. AtrГЎs dela, Cassie vislumbrou o hall de entrada amplo, com paredes revestidas de forma opulente e uma magnГ­fica escadaria de madeira ao fundo.

A empregada olhou de relance ao redor quando uma porta bateu.

Imediatamente, Cassie pressentiu a presença de uma briga. Podia sentir a eletricidade no ar, como uma tempestade se aproximando. Estava na atitude apreensiva da empregada, no estrondo da porta e nos gritos caóticos ao longe, desvanecendo até silenciarem. Seu interior contraiu-se e ela sentiu um esmagador desejo de fugir. Correr atrás do motorista e chamá-lo de volta.

Em vez disso, ela manteve-se firme e forçou um sorriso.

– Sou Cassie, a nova au pair. A família está me esperando.

– Hoje? – a empregada parecia preocupada. – Aguarde um momento – ela entrou apressada na casa e Cassie ouviu-a chamando – Monsieur Dubois, por favor, venha depressa.

Um minuto depois, um homem robusto com cabelo escuro e grisalho entrou no hall a passos largos, seu rosto como um trovГЈo. Ao ver Cassie na porta, ele parou.

– Você já está aqui? – ele disse. – Minha noiva disse que chegaria amanhã de manhã.

Ele virou-se para encarar a jovem de cabelos loiros descoloridos que o seguia. Ela trajava um vestido de noite e suas feições atraentes estavam esticadas em tensão.

– Sim, Pierre, imprimi o e-mail quando estava a cidade. A agência disse que o voo chega às quatro da manhã – virando-se para a mesa de madeira adornada do hall, ela empurrou um peso de papel de vidro veneziano para o lado e brandiu uma folha como defesa. – Aqui. Está vendo?

Pierre deu uma olhada na pГЎgina e suspirou.

– Aqui diz quatro da tarde. Não da manhã. O motorista que você contratou obviamente sabia a diferença, então aqui está ela – ele virou-se para Cassie e estendeu a mão. – Sou Pierre Dubois. Essa é minha noiva, Margot.

Ele não apresentou a empregada. Em vez disso, Margot ordenou que ela fosse preparar o quarto oposto ao das crianças, e a empregada saiu correndo.

– Onde estão as crianças? Já estão na cama? Eles deveriam conhecer Cassie – Pierre disse.

Margot balançou a cabeça. – Eles estavam jantando.

– Tão tarde? Eu não te falei que o jantar deve ser mais cedo quando eles têm escola no dia seguinte? Mesmo estando de férias, já deveriam estar na cama para manter o cronograma.

Margot encarou-o e deu com os ombros, zangada, antes de andar atГ© a soleira da porta Г  direita, seus sapatos de salto estalando.

– Antoinette? – ela chamou. – Ella? Marc?

Foi recompensada por um estrondo de pés e exclamações altas.

Um garoto de cabelos escuros correu para o hall, puxando uma boneca pelos cabelos. Ele veio seguido de perto por uma menina mais nova e gordinha, aos prantos.

– Devolva minha Barbie! – ela gritou.

Derrapando até parar ao ver os adultos, o garoto deu uma arrancada para a escadaria. Conforme ele se lançou, seu ombro pegou o lado curvado de um grande vaso azul e dourado.

Cassie cobriu a boca com as mãos, horrorizada, enquanto o vaso balançava em seu pedestal, em seguida se espatifando no chão, estilhaçado. Cacos de vidro coloridos espirraram por todo o assoalho de madeira escura.

O choque silencioso foi quebrado pelo berro furioso de Pierre.

– Marc! Devolva a boneca para Ella.

Arrastando os pés, seu lábio inferior protuberante, Marc deu passos cuidadosos em meio aos destroços. Com relutância, entregou a boneca a Pierre, que a passou para Ella. Os soluços diminuíram conforme a menina alisava o cabelo da boneca.

– Aquele vaso era arte de vidro Durand – Margot silvou para o garoto. – Antiguidade. Insubstituível. Você tem algum respeito pelas posses do seu pai?

Um silГЄncio carrancudo foi a Гєnica resposta.

– Onde está Antoinette? – Pierre perguntou, soando frustrado.

Margot olhou para cima e, seguindo seu olhar, Cassie viu uma garota magra de cabelos escuros no topo das escadas—ela parecia a mais velha dos três, com diferença de alguns anos. Vestida com elegância em um vestido perfeitamente engomado, ela esperou com uma das mãos no corrimão até ter toda a atenção da família. Então, de queixo erguido, ela desceu.

Ansiosa para causar uma boa impressão, Cassie limpou a garganta e fez uma tentativa de saudação amigável.

– Olá, crianças. Meu nome é Cassie. Estou tão feliz de estar aqui, e feliz por cuidar de vocês.

Ella sorriu de volta, tГ­mida. Marc encarou o chГЈo de forma implacГЎvel. E Antoinette a encarou por um longo tempo, desafiando-a. Depois, sem uma palavra, deu as costas a ela.

– Com licença, Papai – ela disse a Pierre. – Tenho lição de casa para acabar antes de dormir.

– É claro – Pierre disse, e Antoinette marchou para o andar de cima novamente.

Cassie sentiu seu rosto arder de vergonha com o desdém deliberado. Perguntou-se se deveria dizer algo, fazer graça com a situação ou tentar dar desculpas para o comportamento rude de Antoinette, mas não conseguiu pensar nas palavras adequadas.

Margot murmurou, furiosa. – Eu te disse, Pierre. O humor da adolescência já está começando – e Cassie percebeu não ter sido a única que Antoinette havia ignorado.

– Pelo menos ela está fazendo a lição de casa, apesar de ninguém a ajudar - Pierre rebateu. – Ella, Marc, por que não se apresentam apropriadamente para Cassie?

Houve um curto silêncio. Claramente, as apresentações não aconteceriam sem relutância. Mas talvez ela pudesse aliviar a tensão com algumas perguntas.

– Bem, Marc, sei seu nome, mas gostaria de descobrir quantos anos você tem – ela disse.

– Tenho oito anos – ele resmungou.

Olhando entre ele e Pierre, ela definitivamente podia ver a semelhança de família. O cabelo rebelde, o queixo forte, os brilhantes olhos azuis. Até a forma como franziam a testa era similar. As outras filhas também eram morenas, mas Ella e Antoinette tinham feições mais delicadas.

– E Ella, qual sua idade?

– Quase seis – a pequena garota anunciou com orgulho. – Meu aniversário é no dia depois do Natal.

– É um dia bom para fazer aniversário. Espero que isso signifique que você ganhe um monte de presentes a mais.

Ella sorriu, surpresa, como se esta fosse uma vantagem que ainda nГЈo tinha considerado.

– Antoinette é a mais velha de todos. Ela tem doze anos – ela disse.

Pierre bateu as palmas. – Certo, hora de ir para a cama agora. Margot, você pode mostrar a casa à Cassie depois de colocar as crianças na cama. Ela precisa saber se virar por aí. Seja rápida. Temos que sair às sete.

– Ainda preciso terminar de me arrumar – Margot respondeu em tom ácido. – Você pode pôr as crianças na cama e chamar o mordomo para limpar essa bagunça. Mostrarei a casa à Cassie.

Pierre puxou uma respiração irritada antes de olhar para Cassie e apertar os lábios. Ela supunha que sua presença tinha o feito engolir suas palavras.

– Para cima e para a cama – ele disse, e as duas crianças o seguiram relutantemente pela escadaria. Ela alegrou-se em ver Ella virando-se e acenando para ela.

– Venha comigo, Cassie – Margot ordenou.

Cassie seguiu Margot pela porta da esquerda, encontrando-se em um salão formal com extraordinários móveis requintados e tapeçarias revestindo as paredes. O cômodo era enorme e frio; não havia fogo aceso na lareira maciça.

– Este salão é raramente usado e as crianças não tem permissão para ficar aqui. A sala de jantar principal está adiante. As mesmas regras se aplicam.

Cassie perguntou-se com que frequência a mesa de jantar de mogno era utilizada – parecia imaculada, original, e ela contou dezesseis cadeiras de encosto alto. Três outros vasos, parecidos com o que Marc havia quebrado antes, estavam no escuro aparador polido. Ela não conseguia imaginar conversas alegres à mesa do jantar neste espaço austero e silencioso.

Como seria crescer em uma casa assim, onde áreas inteiras estavam fora dos limites por causa de mobília que poderia ser danificada? Ela imaginou que isso pudesse fazer uma criança sentir ser menos importante do que os móveis.

– Aqui chamamos de Sala Azul. – Era uma pequena sala de estar com papéis de parede azul-marinho e grandes portas francesas. Cassie imaginou que abrissem para um pátio ou jardim, mas estava totalmente escuro e tudo que ela podia ver eram as luzes difusas do cômodo refletidas no vidro. Desejou que a casa tivesse lâmpadas de maior potência – todos os cômodos eram mal iluminados, com sombras à espreita nos cantos.

Uma escultura chamou sua atenção... O suporte da estátua de mármore tinha sido quebrado, então ela estava deitada de rosto para cima sobre a mesa. Sua feição era inexpressiva e imóvel, como se a pedra cobrisse o rosto de uma pessoa morta. Seus membros eram robustos, esculpidos de forma rude. Cassie teve calafrios, afastando o olhar da visão arrepiante.

– Essa é uma de nossas peças mais valiosas – Margot a informou. – Marc a derrubou na semana passada. Vamos mandar restaurar em breve.

Cassie pensou na energia destrutiva do garoto e na forma como ele batera o ombro contra o vaso mais cedo. A ação havia sido totalmente acidental? Ou houvera um desejo subliminar de estilhaçar o vidro, de ser notado em um mundo onde as posses pareciam ser a prioridade?

Margot guiou-a de volta pelo caminho que tinham vindo. – Os cômodos naquela passagem ficam trancados. A cozinha é por aqui, à direita, e adiante ficam os alojamentos dos criados. Há uma pequena sala de estar à esquerda, e um espaço onde jantamos em família.

No caminho de volta, passaram por um mordomo em um uniforme de cor cinza que carregava vassoura, pГЎ e escova. Ele deu passagem a elas, mas Margot nГЈo manifestou nenhum reconhecimento.

A ala oeste era uma imagem espelhada da leste. CГґmodos enormes e sombrios com mobГ­lia requintada e obras de arte. Vazios e silenciosos. Cassie estremeceu, ansiando por uma luz com brilho de lar ou o som familiar de uma televisГЈo, se Г© que algo assim existia nesta casa. Ela seguiu Margot para o segundo andar pela magnГ­fica escadaria.

– A ala dos hóspedes. – Três quartos intocados, com camas de dossel, eram separados por duas espaçosas salas de estar. Os quartos eram tão alinhados e formais quanto quartos de hotéis, e as colchas pareciam ter sido engomadas para permanecerem retas.

– E a ala da família.

Cassie iluminou-se, feliz por finalmente chegar Г  parte da casa onde as pessoas moravam.

– O berçário.

Para sua confusão, era outro quarto vazio, ocupado só por um berço de barras altas dos lados.

– E aqui, os quartos das crianças. Nossa suíte é no final dessa passagem, virando o corredor.

Três portas fechadas consecutivas. A voz de Margot baixou e Cassie supôs que ela não quisesse entrar para olhar as crianças – nem mesmo para dizer boa noite.

– Este é o quarto de Antoinette, este de Marc, e o mais próximo do nosso é o da Ella. Seu quarto é de frente com o de Antoinette.

A porta estava aberta e duas empregadas estavam ocupadas arrumando a cama. O quarto era enorme e frio. Era mobiliado com duas poltronas, uma mesa e um grande guarda-roupa de madeira. Pesadas cortinas vermelhas cobriam a janela. Sua mala tinha sido colocada ao pГ© da cama.

– Você vai ouvir as crianças se eles chorarem ou chamarem. Por favor, cuide deles. Amanhã, precisam estar vestidos e prontos às oito. Eles sairão ao ar livre, então escolha roupas quentes.

– Farei isso, mas... – Cassie reuniu sua coragem. – Será que eu poderia jantar, por favor? Não comi nada desde o jantar no avião ontem à noite.

Margot encarou-a, perplexa, depois balançou a cabeça.

– As crianças comeram mais cedo porque estamos de saída. A cozinha está fechada agora. O café da manhã será servido a partir das sete, amanhã. Pode esperar até lá?

– Eu... Eu acho que sim – ela estava passando mal de fome; os doces proibidos em sua mala, que seriam para as crianças, de repente tornaram-se uma tentação irresistível.

– E eu preciso enviar um e-mail para a agência informando que estou aqui. Seria possível pegar a senha do Wi-Fi? Meu telefone não tem sinal.

Agora Margot estava sem expressão. – Não temos Wi-Fi e não há sinal de celular aqui. Só um telefone fixo no escritório de Pierre. Para mandar um e-mail, tem que ir até a cidade.

Sem aguardar a resposta de Cassie, ela deu as costas e foi para o quarto principal.

As empregadas partiram, deixando a cama de Cassie em um frio estado de perfeição.

Ela fechou a porta.

Jamais tinha sonhado que ficaria com saudades de casa, mas naquele momento ela ansiava por uma voz amigável, o burburinho da televisão, a confusão de uma geladeira cheia. Louças na pia, brinquedos no chão, vídeos do Youtube nos telefones. O caos alegre de uma família normal – a vida à qual ela havia esperado se tornar parte.

Em vez disso, sentia já ter se enredado em um conflito amargo e complicado. Nunca poderia ter esperado tornar-se amiga instantânea destas crianças – não com a dinâmica familiar que havia se desenrolado até então. Esse lugar era um campo de batalha – e mesmo que ela encontrasse uma aliada na pequena Ella, temia já ter encontrado uma inimiga em Antoinette.

A luz do teto, que havia estado tremeluzente, de repente falhou. Cassie tateou em sua mala por seu telefone, desfazendo as malas da melhor forma que pГґde com o feixe de luz da lanterna, em seguida plugando-o na Гєnica tomada visГ­vel, do lado oposto do quarto, cambaleando no escuro atГ© sua cama.

Com frio, apreensiva e com fome, subiu para o meio dos lençóis gelados e os puxou até o queixo. Tinha esperado sentir-se mais esperançosa e positiva depois de conhecer a família, mas ao invés disso encontrava-se duvidando de sua capacidade de lidar com eles, temendo o que o dia seguinte traria.




CAPГЌTULO QUATRO


A estГЎtua estava parada na soleira da porta de Cassie, emoldurada pela escuridГЈo.

Seus olhos sem vida abriram-se e sua boca se partiu conforme se movia em direção a ela. As finas rachaduras ao redor de seus lábios se alargaram e, em seguida, seu rosto todo começou a desintegrar. Fragmentos de mármore choveram e sacudiram no chão.

– Não – Cassie sussurrou, mas descobriu que não conseguia se mexer. Estava presa na cama, seus membros congelados apesar de sua mente implorar para que ela escapasse.

A estátua veio até ela, braços esticados, lascas de pedra cascateando de seus membros. Começou a gritar, um som agudo e fino, e conforme a estátua gritava Cassie viu o que estava sendo exposto debaixo da casca de mármore.

O rosto de sua irmГЈ. Gelado, cinzento, morto.

– Não, não, não – Cassie berrou, e seu próprio choro a acordou.

O quarto estava um breu; ela estava enrolada em uma bola, tremendo. Sentou-se, em pГўnico, tateando por um interruptor que nГЈo estava lГЎ.

Seu pior medo... O que tentara tanto suprimir durante o dia, mas que encontrava o caminho até seus pesadelos. Era o medo que Jacqui estivesse morta. Por que por qual outra razão sua irmã deixaria de se comunicar com ela? Por que não haveria cartas, ligações ou contato dela por anos?

Tremendo de frio e de medo, Cassie percebeu que o barulho das pedras em seu sonho havia se tornado o som da chuva, rajadas de vento martelando contra o vidro da janela. E, acima da chuva, ela ouviu outro som. Uma das crianças estava gritando.

“Você vai ouvir as crianças se eles chorarem ou chamarem. Por favor, cuide deles.”

Cassie sentia-se confusa e desorientada. Desejava poder acender uma luz ao lado da cama e tomar alguns minutos para se acalmar. O sonho fora tão vívido que ela ainda sentia-se trancada dentro dele. Mas os gritos deviam ter começado enquanto ela ainda dormia – na realidade, podiam ter causado o pesadelo. Precisavam dela urgentemente, e ela precisava se apressar.

Empurrou o edredom, descobrindo que a cortina não havia sido fechada corretamente. A chuva tinha entrado pela abertura, trazida pelo vento, e a parte inferior de seu cobertor estava encharcada. Ela saiu da cama em meio à escuridão e atravessou o quarto, na direção que esperava que estivesse seu telefone.

Uma mancha de água no chão havia transformado o piso em gelo. Ela derrapou, perdendo o equilíbrio e aterrissando de costas com um baque dolorido. Sua cabeça bateu na estrutura da cama e sua visão explodiu em estrelas.

– Droga – sussurrou, levantando devagar com as mãos e joelhos, esperando que as dores em sua cabeça e a tontura diminuíssem.

Ela engatinhou pelo piso e tateou por seu telefone, esperando que ele tivesse escapado da enchente. Para o seu alívio, esse lado do quarto estava seco. Ela ligou a lanterna, esforçando-se dolorosamente para ficar de pé. Sua cabeça latejava e sua blusa estava encharcada. Ela arrancou-a e rapidamente vestiu a primeira roupa que encontrou – uma calça de moletom e uma blusa cinza. Descalça, saiu do quarto, apressada.

Reluziu a lanterna nas paredes, mas não havia interruptores por perto. Cuidadosamente, seguiu o feixe de luz no sentido do barulho, em direção à suíte dos Dubois. O quarto mais próximo ao deles seria o de Ella.

Cassie bateu na porta rapidamente e entrou.

Felizmente, fez-se a luz, enfim. No brilho da luminГЎria de teto, ela podia ver a Гєnica cama ao lado da janela, onde Ella havia chutado seu cobertor para longe. Gritando e berrando enquanto dormia, ela lutava contra os demГґnios em seus sonhos.

– Ella, acorde!

Fechando a porta, Cassie correu atГ© ela e sentou-se na beira da cama, agarrando os ombros da menina adormecida de forma gentil, sentindo-os curvados e estremecendo. Seus cabelos escuros estavam emaranhados, sua blusa de pijama amontoada. Ela havia chutado o cobertor azul para os pГ©s da cama; devia estar com frio.

– Acorde, está tudo bem. Você só está tendo um sonho ruim.

– Eles estão vindo me pegar! – Ella soluçou, lutando para sair do alcance dela. – Estão vindo, estão esperando na porta!

Cassie segurou-a com firmeza e ajeitou-a em uma posição sentada, arrastando um travesseiro atrás dela enquanto alisava sua blusa amarrotada. Ella estava tremendo de medo. O modo como se referia a “eles” fez Cassie se perguntar se este seria um pesadelo recorrente. O que estava acontecendo na vida de Ella para acarretar um terror tão vívido em seus sonhos? A jovem menina estava completamente traumatizada e Cassie não tinha ideia da melhor forma de acalmá-la. Tinha vagas memórias de Jacqui, sua irmã, brandindo uma vassoura contra um armário para afugentar um monstro imaginário. Mas aquele terror tinha raízes na realidade. Os pesadelos tinham começado depois de Cassie se esconder no armário durante uma das bebedeiras enfurecidas de seu pai.

Perguntou-se se o medo de Ella tambГ©m seria fundamentado por algo que tinha acontecido. Tentaria descobrir depois, mas agora precisava convencГЄ-la de que os demГґnios haviam desaparecido.

– Não tem ninguém vindo te pegar. Está tudo bem. Olhe, estou aqui e a luz está acesa.

Os olhos de Ella abriram-se, arregalados. Cheios de lágrimas, seus olhos encararam Cassie por um momento, depois sua cabeça se virou, focando em algo atrás dela.

Ainda assustada pelo próprio pesadelo e pela insistência de Ella em estar vendo “eles”, Cassie olhou rapidamente ao redor, seu coração acelerando quando a porta se abriu em um golpe.

Margot estava parada na porta com as mãos nos quadris. Ela vestia um robe turquesa de seda e seus cabelos loiros estavam amarrados em uma trança frouxa. Suas feições perfeitas estavam desfiguradas apenas por um borrão residual de rímel.

FГєria emanava dela e Cassie sentiu seu interior se contraindo.

– Por que você demorou tanto? – Margot vociferou. – O choro de Ella nos acordou, ela chorou por horas! Fomos dormir tarde; não estamos te pagando para que nosso sono seja perturbado.

Cassie olhou fixamente para ela, confusa com o fato de que o bem-estar de Ella era aparentemente a última coisa na cabeça de Margot.

– Desculpe – ela disse. Ella estava agarrada nela, tornando impossível que ela se levantasse e encarasse sua patroa. – Eu vim assim que a ouvi, mas a luz do quarto tinha queimado, estava completamente escuro, então demorei um pouco para...

– Sim, você demorou demais e esta, agora, é a sua primeira advertência! Pierre trabalha longas horas e fica furioso quando as crianças o acordam.

– Mas… – com uma onda desafiante, a pergunta brotou dos lábios de Cassie. – Vocês não poderiam ter vindo ao quarto de Ella se a ouviram chorando? É minha primeira noite, e eu não sei onde fica nada no escuro. Da próxima vez, farei melhor, prometo, mas o que eu quero dizer é que ela é sua filha e estava tendo um sonho terrível.

Margot deu um passo em direção à Cassie, seu rosto retesado. Por um momento, Cassie pensou que ela fosse pedir desculpas irritadas e que, juntas, chegariam a uma trégua forcada.

PorГ©m, nГЈo foi o que aconteceu.

Em vez disso, a mão de Margot chicoteou, colidindo com força no rosto de Cassie.

Cassie prendeu um grito, piscando lágrimas enquanto o choro de Ella escalou. Sua bochecha queimava com o golpe, o galo em sua cabeça latejava ainda mais e sua mente, horrorizada, bobinava o entendimento de que sua nova empregadora era violenta.

– Antes de você ser contratada, uma das empregadas da cozinha fazia suas obrigações. E pode fazer de novo, temos muitos criados. Este é o seu segundo aviso. Eu não tolero preguiça, nem empregados que me respondem. Sua terceira transgressão significará demissão imediata. Agora, pare o choro dessa criança, para finalmente conseguirmos dormir.

Ela marchou para fora do quarto, batendo a porta atrГЎs de si.

Freneticamente, Cassie empacotou Ella em seus braços, sentindo imenso alívio conforme os soluços altos diminuíam.

– Está tudo bem – ela sussurrou. – Tudo certo, não se preocupe. Da próxima vez, eu venho até você mais rápido, vou saber o caminho melhor. Gostaria que eu dormisse aqui o resto da noite? E podemos deixar o abajur aceso para ficarmos mais seguras?

– Sim, por favor, fique. Você pode ajudar a impedir que eles voltem – Ella sussurrou. – E deixe a luz acesa. Eu acho que eles não gostam.

O quarto era mobiliado em tons neutros de azul, mas o abajur de cГєpula cor-de-rosa era um item alegre e reconfortante.

Mesmo enquanto consolava Ella, Cassie sentia-se prestes a vomitar e percebeu que suas mГЈos tremiam violentamente. Ela contorceu-se debaixo das cobertas, satisfeita com o calor, pois estava congelando de frio.

Como ela poderia continuar trabalhando para uma empregadora que abusava dela verbal e fisicamente na frente das crianças? Era impensável, imperdoável, e avivava muitas das próprias memórias que ela havia conseguido esquecer. A primeira coisa que faria ao amanhecer seria fazer as malas e ir embora.

Mas... Ainda não tinha recebido nenhum pagamento; teria que esperar até o fim do mês para ter algum dinheiro. Não havia como pagar pelo táxi de volta ao aeroporto, e muito menos condições para arcar com a despesa de alterar o bilhete do voo.

Havia também a questão das crianças.

Como poderia deixá-los nas mãos dessa mulher violenta e imprevisível? Eles precisavam de alguém cuidando deles – especialmente a jovem Ella. Não podia sentar aqui, consolando-a e prometendo que tudo ficaria bem, somente para desaparecer no dia seguinte.

Nauseada, Cassie percebeu que nГЈo tinha escolha. NГЈo poderia ir embora a essa altura. Estava financeiramente e moralmente obrigada a ficar.

Ela teria que tentar se equilibrar na corda bamba do temperamento de Margot para evitar cometer a terceira e Гєltima transgressГЈo.




CAPГЌTULO CINCO


Cassie abriu os olhos, encarando o teto desconhecido em confusão. Demorou alguns instantes para se orientar e perceber onde estava – na cama de Ella, com a luz da manhã atravessando uma fenda nas cortinas. Ella ainda dormia profundamente, meio enterrada sob o edredom. A parte de trás da cabeça de Cassie latejou quando ela se mexeu, a dor recordando-lhe de tudo o que havia acontecido na noite anterior.

Sentou-se apressadamente, lembrando-se das palavras de Margot, do tapa ardido e das advertГЄncias que tinha recebido. Sim, ela era culpada por nГЈo ter atendido a Ella imediatamente, mas nada do que acontecera depois fora justo. Quando tentara se defender, sГі tinha sido ainda mais castigada. EntГЈo, talvez precisasse discutir calmamente algumas das regras da casa com a famГ­lia Dubois esta manhГЈ, para garantir que isso nГЈo acontecesse de novo.

Por que o alarme dela ainda nГЈo tinha tocado? Tinha o programado para seis e trinta, esperando que significasse sua chegada pontual ao cafГ© da manhГЈ, Г s sete.

Cassie checou seu telefone e descobriu com um choque que a bateria tinha acabado. A busca constante por sinal devia tГЄ-lo drenado mais que o habitual. Saindo da cama em silГЄncio, ela foi atГ© o seu quarto, ligou-o no carregador e esperou ansiosamente que ele ligasse.

Praguejou em voz baixa quando viu que era quase sete e trinta. Tinha dormido demais, e agora teria que acordar e aprontar a todos o mais rГЎpido possГ­vel.

Correndo de volta para o quarto de Ella, Cassie abriu a cortina.

– Bom dia – disse. – É um belo dia de sol e é hora do café da manhã.

Mas Ella nГЈo queria se levantar. Ela devia ter batalhado para adormecer depois do sonho ruim e tinha acordado de mau-humor. Irritada e cansada, ela apegou-se chorando ao edredom quando Cassie tentou puxГЎ-lo. Eventualmente, lembrando-se dos doces que tinha trazido consigo, Cassie recorreu ao suborno para fazГЄ-la sair da cama.

– Se ficar pronta em cinco minutos, você ganha um chocolate.

Mesmo assim, mais lutas estavam pela frente. Ella recusou-se a vestir a roupa que Cassie escolheu para ela.

– Quero usar um vestido hoje – ela insistiu.

– Mas, Ella, você pode ficar com frio se for lá fora.

– Não ligo. Quero usar um vestido.

Cassie finalmente conseguiu um meio-termo escolhendo o vestido mais quente que pôde encontrar – de mangas compridas, feito de veludo de algodão, acompanhado de longas meias e botas revestidas de lã. Ella sentou-se na cama com as pernas balançando e seu lábio inferior tremendo. Uma criança estava pronta, finalmente, mas ainda havia duas para aprontar.

Quando abriu a porta do quarto de Marc, ficou aliviada em ver que ele estava acordado e jГЎ fora da cama. Trajando pijamas vermelhos, ele brincava com um exГ©rcito de soldados espalhados pelo chГЈo. A grande caixa metГЎlica de brinquedos debaixo de sua cama estava aberta, cercada por modelos de carros e um rebanho completo de animais de fazenda. Cassie teve que andar com cuidado para evitar pisar em qualquer um deles.

– Olá, Marc. Vamos para o café da manhã? O que você quer vestir?

– Não quero vestir nada. Quero brincar – Marc retorquiu.

– Você pode voltar a brincar depois, mas não agora. Estamos atrasados, temos que correr.

A resposta de Marc foi explodir em lГЎgrimas barulhentas.

– Por favor, não chore – Cassie implorou a ele, ciente dos preciosos minutos que passavam. Mas as lágrimas dele escalaram, como se ele se alimentasse do pânico dela. Ele simplesmente recusava-se a sair do pijama e nem mesmo a promessa de chocolate podia fazê-lo mudar de ideia. Eventualmente, com sua destreza chegando ao fim, Cassie forçou um par de chinelos nos pés dele. Pegando a mão dele na sua e colocando um soldado no bolso do pijama dele, ela o persuadiu a ir com ela.

Quando bateu na porta de Antoinette, não houve resposta. O quarto estava vazio e a cama perfeitamente arrumada com uma camisola rosa dobrada sobre o travesseiro. Se houvesse esperança, Antoinette teria seguido sozinha para o café da manhã.

Pierre e Margot já estavam sentados na sala de jantar informal. Pierre estava vestindo um terno e Margot também se vestia de forma elegante, maquiada à perfeição, seus cabelos enrolados acima dos ombros. Ela levantou o olhar quando eles entraram e Cassie sentiu seu rosto arder em chamas. Rapidamente, ajudou Ella a subir em uma cadeira.

– Desculpe por estarmos um pouco atrasados – ela desculpou-se, afobada e já se sentindo como se tivesse começado com o pé errado. – Antoinette não estava em seu quarto. Não tenho certeza de onde ela esteja.

– Ela já acabou o café da manhã e está treinando piano – Pierre acenou com a cabeça para a sala de música antes de servir mais café. – Ouça. Talvez reconheça a música. “Danúbio Azul”.

Levemente, Cassie ouviu a reprodução precisa de uma melodia que, de fato, soava familiar.

– Ela é muito talentosa – Margot ofereceu, mas o tom azedo de seu comentário não casava com as palavras. Cassie olhou para ela com nervosismo. Será que ela diria alguma coisa sobre o que tinha acontecido na noite anterior?

Porém, enquanto Margot a encarava em um silêncio frio, de repente Cassie se perguntou se não estaria se lembrando de algumas partes erroneamente. A parte de trás de sua cabeça estava sensível e inchada onde havia batido ao escorregar, mas quando tocou o lado esquerdo de seu rosto não havia marcas do tapa ardente. Ou talvez fosse no lado direito? Era assustador que agora não conseguisse se lembrar. Pressionou os dedos na bochecha direita, mas tampouco havia dor.

Com firmeza, Cassie disse a si mesma para parar de se preocupar com os detalhes. Ela não podia estar pensando com clareza depois de um baque duro na cabeça e uma possível concussão. Margot definitivamente tinha a ameaçado, mas a própria imaginação de Cassie poderia ter conjurado o golpe em si. Afinal de contas, ela estivera exausta, desorientada, e tinha emergido diretamente da agonia de um pesadelo.

Seus pensamentos foram interrompidos por Marc exigindo o café da manhã, e ela serviu suco de laranja para as crianças, pegando comida nas bandejas. Ella insistiu em pegar até o último pedaço de presunto e queijo, então Cassie se virou com um croissant de geleia e frutas fatiadas.

Margot drenou seu café em silêncio, olhando pela janela. Pierre folheou um jornal enquanto terminava sua torrada. Os cafés da manhã seriam sempre tão silenciosos? Cassie se perguntou. Nenhum dos pais mostrou qualquer desejo de interagir com ela, com as crianças, ou um com o outro. Será que era por que ela estava em apuros?

Talvez ela devesse iniciar uma conversa e esclarecer as coisas. Precisava se desculpar formalmente por sua demora em chegar à Ella, mas não achava que sua punição tinha sido justa.

Cassie compôs suas palavras cuidadosamente em sua cabeça.

“Eu sei que demorei a tomar conta da Ella ontem à noite. Não a ouvi chorando, mas da próxima vez deixarei a porta do meu quarto aberta. Contudo, não sinto que fui tratada de forma justa. Fui ameaçada e abusada, e recebi duas advertências seguidas em apenas alguns minutos, então será que podemos discutir algumas das regras da casa?”

NГЈo, aquilo nГЈo serviria. Era muito direto. Ela nГЈo queria parecer antagГґnica. Precisava de uma abordagem mais suave, uma que nГЈo tornaria Margot uma inimiga ainda maior.

“Não está uma manhã agradável?”

Sim, este definitivamente seria um bom começo, traria um ângulo positivo à conversa. E, a partir daí, poderia conduzi-la na direção do que realmente queria dizer.

“Eu sei que fui lenta para cuidar da Ella ontem à noite. Não a ouvi chorar, mas da próxima vez deixarei a porta do quarto aberta. Contudo, eu gostaria de discutir algumas regras da casa agora, em termos de como tratamos um ao outro e quando advertências devem ser dadas, para garantir que possa fazer o melhor trabalho”.

Cassie limpou a garganta, nervosa, e baixou seu garfo.

Mas quando ela estava prestes a falar, Pierre dobrou o jornal e levantou-se com Margot.

– Tenham um bom dia, crianças – Pierre disse ao saírem da sala.

Cassie olhou fixamente, confusa. Ela não tinha ideia do que fazer agora. Fora dito a ela que as crianças deveriam estar prontas às oito horas – mas para quê?

Melhor que corresse atrГЎs de Pierre para checar. Foi atГ© a porta, mas ao chegar lГЎ quase colidiu com uma mulher de aparГЄncia agradГЎvel em um uniforme de empregada, carregando uma bandeja de comida.

– Opa. Pronto. Salvei – ela endireitou a bandeja e deslizou as fatias de presunto de volta para o lugar. – Você é a nova au pair, certo? Sou Marnie, a governanta-chefe.

– Prazer em te conhecer – Cassie disse, percebendo que esse era o primeiro rosto sorridente que vira o dia todo. Depois de se apresentar, disse – Eu estava indo perguntar ao Pierre o que as crianças precisam fazer hoje.

– Tarde demais. Ele já terá partido; eles estavam indo direto para o carro. Ele não deixou nenhuma instrução?

– Não. Nada.

Marnie repousou a bandeja e Cassie deu mais queijo a Marc, servindo-se avidamente de torradas, presunto e um ovo cozido. Ella estava se recusando a comer a pilha de comida em seu prato, irritada ao empurrГЎ-la de um lado para o outro com seu garfo.

– Talvez possa perguntar para as próprias crianças – Marnie sugeriu. – Antoinette saberá se existe algo programado. Mas aconselho esperar que ela termine de tocar piano. Ela não gosta que atrapalhem sua concentração.

Era sua imaginação ou Marnie tinha revirado os olhos com as palavras? Encorajada, Cassie perguntou-se se poderiam se tornar amigas. Precisava de uma aliada nesta casa.

Mas não havia tempo para forjar uma amizade agora. Marnie claramente tinha pressa, recolhendo os pratos vazios e louças sujas enquanto perguntava à Cassie se havia algum problema com seu dormitório. Cassie rapidamente explicou os problemas e, depois de prometer trocar os cobertores e trocar a lâmpada antes do almoço, a governanta foi embora.

O som do piano cessara, entГЈo Cassie se dirigiu Г  sala de mГєsica perto do hall de entrada.

Antoinette estava guardando as partituras. Ela virou-se e encarou Cassie com cautela quando ela entrou. Imaculadamente vestida, ela usava um vestido azul real. Seu cabelo estava preso em um rabo de cavalo e seus sapatos estavam perfeitamente lustrados.

– Você está linda, Antoinette, a cor deste vestido é tão bonita – Cassie disse, esperando que elogios lhe encarecessem à garota hostil. – Vocês tem algo planejado para hoje? Alguma atividade ou outra coisa programada?

Antoinette fez uma pausa, pensativa, antes de sacudir a cabeça.

– Nada hoje – ela disse de forma decisiva.

– E quanto ao Marc e a Ella, eles precisam ir para algum lugar?

– Não. Amanhã, Marc tem treino de futebol – Antoinette fechou o tampo do piano.

– Bem, tem alguma coisa que você gostaria de fazer agora? – Talvez permitir que Antoinette escolhesse ajudaria na criação de um laço entre elas.

– Poderíamos caminhar pelo bosque. Todos nós gostamos de fazer isso.

– Onde ficam os bosques?

– A uns dois ou três quilômetros daqui, pela estrada – a menina morena indicou vagamente. – Podemos partir imediatamente. Eu te mostro o caminho. Só preciso trocar minhas roupas.

Cassie havia presumido que o bosque ficasse dentro da propriedade e foi pega de surpresa pela resposta de Antoinette. Mas uma caminhada pelo bosque parecia uma atividade saudГЎvel e agradГЎvel ao ar livre. Cassie tinha certeza de que Pierre aprovaria.



*



Vinte minutos depois, estavam prontos para sair. Cassie olhou dentro de todos os quartos enquanto acompanhava as crianças até o andar de baixo, esperando ver Marnie ou outra pessoa da equipe de governança para dizer a eles onde estava indo.

Não viu ninguém e não tinha ideia de onde começar a procurar. Antoinette estava impaciente para sair, pulando de um pé para o outro com empolgação, portanto Cassie decidiu que fazer a vontade do bom-humor dela era mais importante, especialmente considerando que não ficariam fora por muito tempo. Desceram pelo caminho de cascalho com Antoinette os conduzindo.

Atrás de um enorme carvalho, Cassie viu um bloco de cinco estábulos – ela havia os notado quando chegara, no dia anterior. Aproximou-se para ver mais de perto, descobrindo que eles estavam vazios e escuros, as portas abertas. O campo adiante estava desocupado, as grades de madeira quebradas em alguns pontos e o portão pendurado pelas dobradiças, a grama crescendo alta e selvagem.

– Vocês têm cavalos aqui? – perguntou a Antoinette.

– Já tivemos, muitos anos atrás, mas não temos nenhum há muito tempo – ela respondeu. – Ninguém de nós cavalga mais.

Cassie encarou os estГЎbulos desertos enquanto absorvia esta bomba inesperada.

Maureen havia lhe dado informações errôneas e seriamente ultrapassadas.

Os cavalos tinham desempenhado um papel em sua decisГЈo de vir para cГЎ. Fora um incentivo. Ouvir sobre eles tinha feito o lugar parecer melhor, mais atrativo, mais vivo. Mas eles nГЈo tinham estado aqui hГЎ muito tempo.

Durante a entrevista, Maureen tinha declarado que haveria uma real oportunidade para que ela aprendesse a cavalgar. Por que teria deturpado as coisas, e o que mais ela dissera que poderia nГЈo ser verdade?

– Vamos! – Antoinette puxou sua manga com impaciência. – Precisamos ir!

Conforme Cassie dava as costas, ocorreu a ela que não havia razão para que Maureen falsificasse informações. O restante de sua descrição sobre a casa e a família estivera razoavelmente correto e, como agente, ela só podia repassar os fatos fornecidos.

Se fosse assim, isso significava que deveria ter sido Pierre quem mentira. E isso, ela percebeu, era ainda mais perturbador.

Uma vez que tinham feito uma curva e a mansГЈo estava fora de vista, Antoinette diminuiu o ritmo, e na hora certa para Ella, que reclamava que seus sapatos doГ­am.

– Pare de choramingar – Antoinette avisou. – Lembre-se, papai sempre diz que não se deve choramingar.

Cassie pegou Ella no colo e a carregou, sentindo seu peso aumentar a cada passo. JГЎ estava carregando a mochila abarrotada com os casacos de todos, e seus Гєltimos euros no bolso lateral.

Marc saltava adiante, quebrando galhos das cercas e atirando-os na estrada como dardos. Cassie constantemente tinha que lembrГЎ-lo de se afastar do asfalto. Ele era tГЈo desatencioso e inconsciente que poderia facilmente pular no caminho de um carro.

– Estou com fome – Ella reclamou.

Exasperada, Cassie pensou no prato intocado dela no cafГ© da manhГЈ.

– Tem uma loja na próxima esquina – Antoinette disse a ela. – Eles vendem bebidas e lanches. – Ela parecia estranhamente alegre nesta manhã, mas Cassie não tinha ideia do porquê. Apenas estava contente por Antoinette parecer estar simpatizando com ela.

Ela esperava que a loja pudesse vender relógios baratos, porque sem um telefone ela não tinha nenhum meio de saber as horas. Mas a loja se mostrou ser um viveiro, estocado de mudas de plantas, árvores novas e fertilizantes. O quiosque no caixa vendia apenas refrigerante e lanches – o vendedor idoso, empoleirado em um banco alto ao lado do aquecedor a gás, explicou que não havia mais nada. Os preços eram estranhamente altos e ela se estressou enquanto contava seu dinheiro escasso, comprando chocolate e uma lata de suco para cada criança.

Enquanto ela pagava, as três crianças atravessaram a estrada correndo para olhar um burro mais de perto. Cassie gritou para eles voltarem, mas eles a ignoraram.

O homem grisalho deu de ombros, oferecendo simpatia. – Crianças são crianças. Eles parecem familiares. Vocês moram aqui perto?

– Sim. São as crianças Dubois. Sou a nova au pair deles, é meu primeiro dia de trabalho – Cassie explicou.

Ela esperara algum reconhecimento da vizinhança, mas em vez disso o vendedor arregalou os olhos de modo alarmado.

– Aquela família? Está trabalhando para eles?

– Sim – os medos de Cassie ressurgiram. – Por quê? O senhor os conhece?

Ele assentiu.

– Todos os conhecem aqui. E Diane, a esposa de Pierre, às vezes comprava plantas de mim.

Ele viu o rosto intrigado dela.

– A mãe das crianças – ele elaborou. – Ela faleceu no ano passado.

Cassie o encarou, sua mente girando. Ela era incapaz de acreditar no que acabara de ouvir.

A mãe das crianças havia morrido, e tão recentemente – apenas no ano anterior. Por que ninguém tinha dito nada sobre isso? Nem mesmo Maureen tinha o mencionado. Cassie presumira que Margot fosse mãe deles, mas agora percebia sua ingenuidade; Margot era jovem demais para ser a mãe de uma garota de doze anos.

Essa era uma famГ­lia que recentemente sofrera um luto, rasgada por uma grande tragГ©dia. Maureen deveria tГЄ-la informado sobre isso.

Mas Maureen nГЈo sabia sobre os cavalos nГЈo estarem mais aqui, porque nГЈo tinha sido informada. Com uma punhalada de medo, Cassie perguntou-se se Maureen sequer sabia disso.

O que houvera com Diane? Como sua perda tinha afetado Pierre e as crianças, e toda a dinâmica familiar? Como eles se sentiam sobre a chegada de Margot em sua casa logo em seguida, tão cedo? Não era de se admirar que ela pudesse sentir a tensão, esticada como um fio, em praticamente todas as interações dentro daquelas paredes.

– Isso é... Isso é realmente triste – ela gaguejou, percebendo que o vendedor a fitava com curiosidade. – Eu não sabia que ela tinha morrido tão recentemente. Imagino que a morte dela deva ter sido traumática para todos.

De cenho profundamente franzido, o vendedor ofereceu-lhe o troco e ela guardou as poucas moedas.

– Você conhece o histórico da família, com certeza.

– Não sei muito, então realmente agradeceria se pudesse me explicar o que aconteceu – Cassie debruçou-se sobre o balcão, ansiosa.

Ele balançou a cabeça.

– Não posso dizer mais. Você trabalha para a família.

Por que aquilo fazia diferença? Cassie se perguntou. Sua unha cavou em cheio sua cutícula e ela percebeu, chocada, que tinha retornado ao seu antigo hábito nervoso. Bem, estava estressada, com certeza. O que o idoso havia lhe contado era preocupante o bastante, mas o que ele se recusava a dizer era ainda pior. Talvez se fosse honesta com ele, ele poderia ser mais aberto.

– Eu não entendo a situação nem um pouco, e estou com medo de ter me metido em algo além das minhas capacidades. Para ser sincera com você, não me disseram sequer que Diane tinha morrido. Não sei o que aconteceu, o como as coisas eram antes. Se eu tivesse uma imagem melhor, seria de muita ajuda.

Ele assentiu, parecendo se simpatizar mais, mas entГЈo o telefone no escritГіrio tocou e ela soube que a oportunidade estava perdida. Ele saiu para atendГЄ-lo, fechando a porta atrГЎs de si.

Desapontada, Cassie deu as costas ao balcão, colocando nos ombros a mochila que parecia duas vezes mais pesada do que antes, ou talvez a informação perturbadora que o vendedor lhe dera fosse o que estivesse pesando sobre ela. Ao sair da loja, perguntou-se se teria a chance de voltar sozinha e falar com o idoso. Quaisquer que fossem os segredos que ele soubesse sobre a família Dubois, ela estava desesperada para descobrir.




CAPГЌTULO SEIS


Um grito assustado de Ella sacudiu Cassie de volta à situação presente. Do outro lado da estrada, viu que Marc, para seu terror, tinha escalado a cerca e, usando as mãos, alimentava de capim um crescente rebanho que agora incluía cinco burros peludos, cinzentos e incrustrados de lama. De orelhas baixas, eles beliscavam uns aos outros enquanto cercavam o menino.

Ella gritou de novo quando um dos burros avançou em Marc, derrubando-o de costas.

– Saia daí! – Cassie gritou, atravessando a estrada em arrancada. Ela debruçou-se sobre a cerca e agarrou as costas da camisa dele, arrastando-o antes que ele pudesse ser pisoteado. Essa criança tinha um desejo de morte? A camisa dele estava molhada e suja, e ela não tinha trazido outra. Felizmente, o sol ainda estava brilhando, apesar das nuvens se reunindo a oeste.

Quando entregou a Marc seu chocolate, ele enfiou a barra toda na boca, suas bochechas saltando. Ele riu, cuspindo pedaços no chão, antes de correr adiante com Antoinette.

Ella empurrou seu chocolate e começou a chorar alto.

Cassie pegou a pequena menina no colo outra vez.

– O que há de errado? Não está com fome? – perguntou.

– Não. Estou com saudades da mamãe – ela soluçou.

Cassie abraçou-a apertado, sentindo a bochecha quente de Ella contra a sua.

– Sinto muito, Ella. Sinto muito mesmo. Eu acabei de saber disso. Você deve sentir muita falta dela.

– Queria que o papai me contasse onde ela foi – Ella lamentou.

– Mas... – Cassie estava sem palavras. O vendedor tinha dito claramente que Diane Dubois tinha morrido. Por que Ella pensava o contrário?

– O que o seu papai te contou? – ela perguntou cuidadosamente.

– Ele me disse que ela foi embora. Não disse para onde. Só disso que ela partiu. Onde ela foi? Eu quero que ela volte! – Ella pressionou a cabeça contra o ombro de Cassie, soluçando a plenos pulmões.

A cabeça de Cassie estava girando. Ella teria quatro anos à ocasião e certamente entenderia o que significava a morte. Teria tido uma chance para sofrer o luto, e um funeral. Ou talvez não.

Sua mente ficou confusa com a alternativa; a de que Pierre tivesse deliberadamente mentido para Ella sobre a morte de sua esposa.

– Ella, não fique triste – ela disse, esfregando seus ombros gentilmente. – Às vezes, as pessoas vão embora e não voltam mais. – Pensou em Jacqui, perguntando-se novamente se jamais descobriria o que realmente tinha acontecido com ela. Não saber era terrível. A morte, apesar de trágica, ao menos era final.

Cassie só podia imaginar a agonia que Ella deveria ter suportado, acreditando que sua própria mãe a havia abandonado sem uma palavra. Não era de se admirar que ela tivesse pesadelos. Precisava descobrir toda a história, se houvesse mais. Perguntar diretamente a Pierre seria intimidador demais, ela não se sentiria confortável em puxar o assunto a não ser que ele mesmo o fizesse. Talvez as outras crianças lhe contassem a versão delas, se ela perguntasse na hora certa. Aquele talvez fosse o melhor lugar para começar.

Antoinette e Marc esperavam em uma bifurcação na estrada. Finalmente, Cassie viu o bosque adiante. Antoinette tinha subestimado a distância; eles deviam ter caminhado quase cinco quilômetros, e o viveiro era a última construção que tinham visto. A estrada tinha se tornado uma pista estreita, seu pavimento rachado e quebrado, e as cercas selvagens, cheias de arbustos.

– Você e Ella podem descer por aquele caminho – Antoinette aconselhou, apontando para uma trilha cheia de mato. – É um atalho.

Grata por qualquer rota mais curta, ela desceu pelo caminho estreito, abrindo caminho dentre uma profusГЈo de arbustos frondosos.

No meio do caminho, a pele em seus braços começou a arder tão dolorosamente que ela chorou alto, pensando ter sido picada por um enxame de vespas. Olhando para baixo, viu que sua pele estava inchada com erupções onde as folhas tinham lhe roçado. Em seguida, Ella gritou.

– Meu joelho está ardendo!

Sua pele estava inchando com urticГЎrias, os vergГµes profundamente avermelhados contra sua carne macia e pГЎlida.

Cassie abaixou-se tarde demais e um galho cheio de folhas açoitou seu rosto. Imediatamente, a ardência se espalhou e ela berrou, alarmada.

Afastada, ela ouviu a risada animada e estridente de Antoinette.

– Enterre sua cabeça no meu ombro – Cassie comandou, envolvendo os braços com força ao redor da jovem menina. Tomando uma respiração profunda, ela abriu caminho, empurrando através das folhas ardentes até explodir em uma clareira.

Antoinette gritava de alegria, dobrada sobre um tronco de ГЎrvore caГ­do, e Marc estava a acompanhando, infectado pela hilaridade. Nenhum deles parecia se importar com as lГЎgrimas indignadas de Ella.

– Você sabia que tinha hera venenosa lá! – Cassie a acusou enquanto baixava Ella ao chão.

– Urtigas – Antoinette a corrigiu antes de explodir em gargalhadas renovadas. Não havia gentileza no som – as risadas eram completamente cruéis. Esta garota estava mostrando sua verdadeira face e não tinha piedade.

A onda de fúria de Cassie a surpreendeu. Por um momento, seu único desejo era esbofetear o rosto presunçoso e cheio de risinhos de Antoinette o mais forte que pudesse. A força de sua ira era assustadora. Ela realmente deu um passo adiante, levantando a mão, antes que a sanidade a prevenisse e ela a abaixasse rapidamente, chocada com o que quase tinha feito.

Ela deu as costas, abrindo sua mochila, e vasculhou pela única garrafa de água. Esfregou um pouco no joelho de Ella e o resto na própria pele, esperando que aliviasse a queimação, mas toda vez que tocava o inchaço parecia só piorar. Ela olhou ao redor para ver se havia uma bica por perto, ou uma fonte de água, onde pudesse passar a dolorosa erupção em água gelada.

Porém, não havia nada. Esses bosques não eram o destino familiar que ela tinha esperado. Não havia bancos, nem placas de avisos. Sem latas de lixo, torneiras ou fontes, nem trilhas bem-cuidadas. Havia apenas uma floresta escura e antiga, com enormes árvores – faias, abetos e pinheiros – que se agigantavam a partir da vegetação rasteira emaranhada.

– Temos que ir para casa agora – ela disse.

– Não – Marc argumentou. – Eu quero explorar.

– Este não é um lugar seguro para explorar. Não tem nem um caminho apropriado. E está escuro demais. Você deveria colocar seu casaco agora, ou vai pegar um resfriado.

– Resfriado, vem me pegar! – Com uma expressão arteira, o garoto disparou, tecendo rapidamente entre as árvores.

– Droga! – Cassie lançou-se atrás dele, rangendo os dentes conforme ramos afiados rasgavam sua pele inflamada. Ele era menor e mais rápido do que ela, e sua risada a provocava conforme ele mergulhava no matagal.

– Marc, volte aqui! – ela chamou.

Mas suas palavras pareciam apenas estimulá-lo. Ela o seguiu com obstinação, esperando que ele se cansasse ou decidisse abandonar a brincadeira.

Finalmente, ela o alcançou quando ele parou para recuperar o fôlego, chutando pinhas. Ela agarrou seu braço com firmeza antes que ele pudesse correr outra vez.

– Isso não é brincadeira. Veja, tem uma ravina ali na frente – o solo entrou em íngreme declive e ela conseguia ouvir água fluindo.

– Vamos voltar agora. É hora de ir para casa.

– Não quero ir para casa – Marc resmungou, arrastando seus pés enquanto a seguia.

Nem eu, Cassie pensou, sentindo repentina simpatia por ele.

Mas quando chegaram de volta à clareira, Antoinette era a única que estava lá. Estava sentada em um casaco dobrado, trançando os cabelos por cima dos ombros.

– Onde está sua irmã? – Cassie perguntou.

Antoinette olhou para cima, parecendo despreocupada.

– Ela viu um pássaro logo depois que você saiu, e queria vê-lo mais de perto. Não sei para onde ela foi depois disso.

Cassie encarou Antoinette, horrorizada.

– Por que você não foi com ela?

– Você não me disse para ir – Antoinette disse com um sorriso frio.

Cassie respirou profundamente, controlando outra onda de fúria. Antoinette estava certa. Ela não deveria ter abandonado as crianças sem avisá-las para ficarem onde estavam.

– Para onde ela foi? Mostre exatamente onde a viu por último.

Antoinette apontou. – Ela foi para lá.

– Vou procurar por ela – Cassie manteve a voz deliberadamente calma. – Fique aqui com Marc. Não saia de jeito nenhum dessa clareira ou deixe seu irmão sair da sua vista. Entendeu?

Antoinette assentiu distraidamente, penteando os cabelos com os dedos. Cassie só poderia ter esperanças de que ela fizesse como estava sendo mandada. Caminhou até onde Antoinette indicara, formando uma concha com as mãos diante da boca.

– Ella? – gritou o mais alto que podia. – Ella?

Esperou, torcendo para ouvir uma resposta ou passos se aproximando, mas não houve retorno. Tudo o que podia ouvir era o fraco farfalhar das folhas ao vento, que ganhava força.

SerГЎ que Ella realmente poderia ter saГ­do do alcance de sua voz no tempo em que ela estivera longe? Ou algo tinha acontecido com ela?

PГўnico surgiu dentro dela enquanto entrava no bosque, correndo.




CAPГЌTULO SETE


Cassie correu, adentrando ainda mais a floresta, tecendo em meio às árvores. Gritou o nome de Ella, rezando para que ouvisse uma resposta. Ella poderia estar em qualquer lugar; não havia um caminho evidente por onde ela pudesse ter seguido. Os bosques eram escuros e arrepiantes, as rajadas de vento sopravam fortes e as árvores pareciam abafar seus gritos. Ella podia ter caído em um barranco, ou tropeçado e batido a cabeça. Poderia ter sido apanhada por um vagabundo. Qualquer coisa poderia ter acontecido com ela.

Cassie derrapou por trilhas cheias de musgos, tropeçando em raízes. Seu rosto estava arranhado em centenas de lugares e sua garganta doía de gritar.

Eventualmente, ela parou, com a respiração ofegante. Seu suor parecia gelado e pegajoso na brisa. O que deveria fazer agora? Estava começando a escurecer. Não poderia gastar mais tempo procurando ou colocaria todos em perigo. O viveiro era seu porto de escala mais próximo, se ainda estivesse aberto. Poderia parar lá, contar ao vendedor o que tinha acontecido e pedir que ele ligasse para a polícia.

Demorou muito para que ela, depois de algumas voltas erradas, refizesse seus passos. Rezou para que os outros estivessem lhe esperando sГЈos e salvos. E esperava mais que tudo que Ella tivesse encontrado o caminho de volta.

Mas, ao chegar Г  clareira, Antoinette estava amarrando folhas em uma corrente, e Marc estava enrolado nos casacos, adormecido.

Nada de Ella.

Imaginou a tempestade de raiva quando retornassem. Pierre ficaria furioso, com justificativa. Margot poderia estar simplesmente perversa. Lanternas brilhariam na noite enquanto a comunidade caçaria por uma garota perdida, ferida, ou pior, como resultado de sua negligência. Era sua culpa e seu fracasso.

O horror da situação a soterrou. Desabou contra uma árvore e enterrou seu rosto nas mãos, tentando desesperadamente controlar seus soluços.

E então Antoinette disse, em uma voz prateada. – Ella? Pode sair agora!

Cassie olhou para cima, encarando com descrença enquanto Ella escalava de trás de um tronco caído, removendo folhas de sua saia.

– O quê? – Sua voz era rouca e trêmula. – Onde você estava?

Ella sorriu, feliz.

– Antoinette disse que estávamos brincando de esconde-esconde e eu não deveria sair quando você chamasse, ou eu perderia. Estou com frio agora… Pode me dar meu casaco?

Cassie sentiu-se espancada pelo choque. NГЈo acreditava que alguГ©m seria capaz de imaginar um cenГЎrio assim por pura maldade.

Não era apenas a crueldade, mas o cálculo de suas ações que gelaram Cassie. O que estava levando Antoinette a atormentá-la, e como ela poderia impedir que acontecesse no futuro? Não poderia esperar apoio nenhum dos pais. Ser legal não tinha funcionado, e raiva apenas entregaria o ouro às mãos de Antoinette. A garota segurava todas as cartas, e sabia.

Agora, eles retornariam para casa imperdoavelmente tarde, não tendo contado a ninguém onde tinham ido. As crianças estavam enlameadas, famintas, com sede e exaustas. Ela temia que Antoinette tivesse feito mais do que o suficiente para que ela fosse instantaneamente demitida.

Foi uma longa, fria e desconfortável caminhada de volta ao castelo. Ella insistiu em ser carregada por todo o caminho, e os braços de Cassie tinham praticamente cedido quando eles chegaram a casa. Marc se arrastava atrás, resmungando, cansado demais para fazer mais do que vez ou outra atirar pedras nos pássaros nas sebes. Até mesmo Antoinette parecia não ter prazer em sua vitória, caminhando pesarosamente, carrancuda.

Quando Cassie bateu na imponente porta de entrada, ela foi aberta imediatamente. Margot a encarava, ruborizada de raiva.

– Pierre! – ela gritou. – Finalmente eles estão aqui.

Cassie começou a tremer ao ouvir o pisotear furioso de pés.

– Onde, em nome do diabo, vocês estavam? – Pierre berrou. – Que irresponsabilidade é essa?

Cassie engoliu duro.

– Antoinette queria ir até o bosque. Então saímos para uma caminhada.

– Antoinette... O quê? O dia inteiro? Por que diabos você deixou que ela fizesse isso, e por que não obedeceu às suas instruções?

– Que instruções? – Encolhendo-se da ira dele, Cassie desejava fugir e se esconder, como fizera quando tinha dez anos e seu pai entrava em uma das fúrias dele. Olhando para trás, viu que as crianças sentiam exatamente o mesmo. Seus rostos acometidos e aterrorizados deram a ela a coragem que precisava para continuar encarando Pierre, mesmo que suas pernas tremessem.

– Deixei um bilhete na porta do seu quarto – com esforço, ele falou em uma voz mais normal. Talvez ele também tivesse notado as reações das crianças.

– Eu não encontrei nenhum bilhete – Cassie olhou de relance para Antoinette, mas os olhos dela estavam voltados para baixo e seus ombros curvados.

– Antoinette deveria se apresentar em um recital de piano em Paris. Um ônibus chegou para pegá-la às oito e meia, mas ela tinha sumido. E Marc tinha treino de futebol na cidade ao meio-dia.

Um nó gelado apertou-se no estômago de Cassie conforme ela percebeu quão sérias eram as consequências de suas ações. Decepcionara Pierre, e outros, da pior forma possível. Este dia deveria ter sido um teste de suas capacidades de organizar o cronograma das crianças. Em vez disso, eles haviam saído em uma excursão não planejada para o meio do nada e perdido atividades importantes. Se ela fosse Pierre, também estaria lívida.

– Sinto muito – ela balbuciou.

Ela não ousou contar a Pierre abertamente que as crianças tinham a enganado, mesmo que estivesse certa de que ele suspeitava disso. Se contasse, eles poderiam acabar sofrendo o impacto da fúria dele.

Um gongo soou da sala de jantar e Pierre olhou para o seu relГіgio.

– Falaremos disso mais tarde. Prepare-os para o jantar agora. Rápido, ou a comida vai esfriar.

“Rápido” era mais fácil falar do que fazer. Demorou mais de meia hora, e mais lágrimas, até que Marc e Ella estivessem banhados e em seus pijamas. Felizmente, Antoinette estava em seu melhor comportamento e Cassie se perguntou se ela estaria se sentindo sobrecarregada pelas consequências de suas ações. Quanto a si mesma, Cassie estava entorpecida após a catástrofe em que seu dia se transformara. Meio encharcada após banhar as crianças, ela não teve tempo para tomar banho. Vestiu uma blusa seca e os vergões em seus braços se incendiaram outra vez.

Eles desceram as escadas, em tropa, desconsolados.

Pierre e Margot estavam esperando no pequeno salão ao lado da sala de jantar. Margot bebericava uma taça de vinho enquanto Pierre reabastecia-se de conhaque e soda.

– Finalmente estamos prontos para comer – Margot observou sucintamente.

O jantar foi uma caçarola de peixe, e Pierre insistiu que as duas crianças maiores servissem a si mesmas, apesar de permitir que Cassie ajudasse Ella.

– Eles devem aprender etiqueta cedo – ele disse, prosseguindo a instrui-los no protocolo correto durante todo o jantar.

– Coloque o guardanapo no colo, Marc. Não amarrotado no chão. E seus cotovelos devem ficar para dentro; Ella não quer ser cutucada dos lados enquanto você está comendo.

O ensopado era rico e delicioso, e Cassie estava faminta, mas a alocução de Pierre era suficiente para tirar a fome de qualquer um. Ela restringiu-se a pequenas e delicadas bocadas, olhando de relance para Margot para checar se estava fazendo as coisas no modo francês apropriado. As crianças estavam exaustas, incapazes de compreender o que o pai delas dizia, e Cassie se pegou desejando que Margot dissesse a Pierre que agora não era uma boa hora para minúcias.

Ela perguntou-se se os jantares haviam sido diferentes quando Diane estava viva, e o quanto a dinâmica havia mudado após a chegada de Margot. Sua própria mãe havia mantido o controle firme no conflito, à sua maneira calma, mas ele havia entrado em erupção incontrolavelmente quando ela morrera. Talvez Diane tivesse desempenhado um papel similar.

– Um pouco de vinho? – Para sua surpresa, Pierre encheu a taça dela com vinho branco antes que ela pudesse recusar. Talvez fosse o protocolo também.

O vinho era aromático e frutado e, depois de apenas alguns goles, ela sentiu o álcool inundar sua corrente sanguínea, enchendo-a com uma sensação de bem-estar e relaxamento perigosa. Ela abaixou a taça apressadamente, sabendo que não podia se dar ao luxo de nenhum deslize.

– Ella, o que está fazendo? – Pierre perguntou, exasperado.

– Estou coçando meu joelho – Ella explicou.

– Por que está usando uma colher?

– Minhas unhas são muito curtas para alcançar a coceira. Caminhamos por urtigas – Ella disse, com orgulho. – Antoinette mostrou a Cassie um atalho. Eu fui picada no joelho. Cassie foi picada no rosto todo e nos braços. Ela estava chorando.

Margot baixou sua taça de vinho em um golpe.

– Antoinette! Você fez isso de novo?

Cassie piscou, surpresa ao descobrir que ela jГЎ tinha feito aquilo antes.

– Eu... – Antoinette começou de forma desafiadora, mas Margot estava irrefreável.

– Você é uma fera perversa. Tudo o que você quer é causar transtorno. Você pensa que está sendo esperta, mas você é somente uma garota estúpida, má e infantil.

Antoinette mordeu os lГЎbios. As palavras de Margot racharam sua fria casca de compostura.

– Não é culpa dela – Cassie se pegou dizendo em voz alta, perguntando-se tarde demais se o vinho tinha sido uma má ideia.

– Deve ser muito difícil para ela lidar com... – Ela parou a si mesma apressadamente, porque tinha estado prestes a mencionar a morte da mãe deles, mas Ella acreditava em uma versão diferente e ela não tinha ideia de qual era a verdadeira história. Agora não era hora de perguntar.

– Lidar com tantas mudanças – ela disse. – De toda forma, Antoinette não me disse para ir por aquele caminho. Eu mesma o escolhi. Ella e eu estávamos cansadas, parecia um bom atalho.

Ela não se atreveu a olhar para Antoinette enquanto falava, no caso de Margot suspeitar um conluio, mas conseguiu pegar o olhar de Ella. Ofereceu a ela um olhar conspiratório, esperando que ela entendesse o porquê de Cassie estar ficando do lado de sua irmã, e foi recompensada com um pequeno aceno de cabeça.

Cassie temia que sua defesa fosse deixá-la em terreno ainda mais instável, mas precisava falar algo. Afinal de contas, sabia como era crescer em uma família fraturada, onde a guerra poderia explodir a qualquer momento. Entendia a importância de um exemplo mais velho a ser seguido que pudesse oferecer abrigo das tempestades. Como ela poderia ter suportado sem a força de Jacqui durante as horas ruins? Antoinette não tinha ninguém para ficar ao lado dela.

– Então, está escolhendo ficar do lado dela? – Margot chiou. – Acredite em mim, você vai se arrepender disso, assim como eu me arrependi. Você não a conhece como eu. – Ela apontou um dedo de manicure carmesim para Antoinette, que começou a soluçar. – Ela é igualzinha a sua...

– Pare! – Pierre rugiu. – Não aceito discussões à mesa do jantar. Margot, cale a boca agora, você já disse o bastante.

Margot ficou de pГ© tГЈo repentinamente que sua cadeira foi derrubada com uma batida.

– Está me mandando calar a boca? Então, eu vou embora. Mas não pense que não tentei te avisar. Você vai ter o que você merece, Pierre. – Ela marchou até a porta, mas depois se virou, encarando Cassie com ódio sem disfarce.

– Todos vocês terão o que merecem.




CAPГЌTULO OITO


Cassie prendeu a respiração enquanto os passos enfurecidos de Margot recuavam na passagem. Olhando de relance ao redor da mesa, viu que não era a única chocada a ficar em silêncio pela explosão perversa da loira. Os olhos de Marc estavam largos como pires, e sua boca estava apertada. Ella chupava o dedão. Antoinette franzia o cenho em uma fúria sem palavras.

Com uma praga resmungada, Pierre empurrou sua cadeira para trГЎs.

– Vou lidar com isso – ele disse, andando até a porta a passos largos.

Aliviada por ter algum trabalho a fazer, Cassie levantou-se, olhando para os pratos e a comida espalhada em detritos sobre a mesa. Ela deveria limpar a mesa, ou pedir que as crianças ajudassem? A tensão estava suspensa no ar, densa como fumaça. Desejava uma atividade familiar normal do dia-a-dia, como lavar as louças, que ajudasse a dissolvê-la.

Antoinette viu a direção de seu olhar.

– Deixe tudo – ela estourou. – Alguém limpa depois.

Forçando animação em seu tom, Cassie disse. – Bem, então, é hora de ir para a cama.

– Não quero ir para a cama – Marc protestou, balançando a cadeira para trás. Conforme a cadeira se desequilibrou, ele gritou em um falso susto, agarrando a toalha de mesa. Cassie pulou para salvá-lo. Foi rápida o bastante para impedir que a cadeira caísse, mas lenta demais para prevenir que Marc perturbasse duas das taças e causasse que um prato se espatifasse no chão.

– Para cima – ela ordenou, tentando soar severa, mas sua voz estava aguda e instável de exaustão.

– Quero ir lá fora – Marc anunciou, correndo em direção às portas francesas. Lembrando-se de como ele a ultrapassara na floresta, Cassie mergulhou atrás dele. Ele já havia destrancado a porta quando o alcançou, mas ela conseguiu agarrá-lo e impedir que ele a abrisse. Viu o reflexo deles no vidro escuro. O menino de cabelos rebeldes e expressão sem arrependimento – e ela. Seus dedos apertando os ombros dele, olhos arregalados e ansiosos, rosto branco como papel.

Ver-se naquele momento inesperado a fez perceber o quanto falhara terrivelmente em seus deveres até agora. Fazia um dia inteiro que tinha chegado, e nem por um minuto estivera no comando. Estaria se enganando se pensasse o contrário. Suas expectativas de se encaixar na família e ser amada pelas crianças, ou ao menos benquista, não poderiam ter sido mais irreais. Eles não tinham um pingo de respeito por ela, e ela não fazia ideia de como mudar as coisas.

– Hora de ir para a cama – ela repetiu, cansada. Mantendo sua mão esquerda firmemente no ombro de Marc, removeu a chave da fechadura. Notando um gancho no alto da parede, estendeu-se para pendurá-la. Marchou Marc escada acima sem soltá-lo. Ella trotou ao seu lado e Antoinette a seguiu, desanimada, batendo a porta de seu quarto sem sequer dizer boa noite.

– Quer que eu leia uma história para você? – perguntou a Marc, mas ele balançou a cabeça. – Tudo certo. Para a cama, então. Você pode levantar cedo amanhã e brincar com seus soldados, se for dormir agora.

Era o único incentivo que ela conseguira pensar, mas pareceu funcionar; ou talvez o cansaço finalmente tivesse alcançado o jovem garoto. De qualquer forma, para seu alívio, ele fez o que ela pediu. Ela puxou o cobertor, notando que suas mãos tremiam de pura exaustão. Se ele tentasse se libertar outra vez, ela sabia que explodiria em lágrimas. Não estava convencida de que ele permaneceria na cama, mas, pelo menos por agora, seu trabalho estava feito.

– Eu quero uma história – Ella puxou seu braço. – Você vai ler uma para mim?

– É claro – Cassie caminhou para o quarto dela e escolheu um livro da pequena seleção na prateleira. Ella pulou na cama, saltando no colchão com entusiasmo, e Cassie se perguntou com que frequência liam para ela no passado, porque não parecia ser uma parte costumeira de sua rotina. Apesar de não haver – ela supunha – muita normalidade na infância de Ella até agora.

Leu a histГіria mais curta que pГґde encontrar, apenas para que Ella insistisse em uma segunda. As palavras nadavam diante dos seus olhos quando ela chegou ao fim e fechou o livro. Ao olhar, Cassie viu, para seu alГ­vio, que a leitura havia acalmado Ella, que finalmente dormia.

Apagou o abajur e fechou a porta. Caminhando de volta pelo corredor, checou Marc, mantendo-se o mais quieta possível. Felizmente, o quarto ainda estava escuro e ela podia ouvir uma respiração suave.

Ao abrir a porta de Antoinette, a luz estava acesa. Antoinette estava sentada na cama, rabiscando anotações em um livro de capa cor-de-rosa.

– Bate-se na porta antes de entrar – ela repreendeu Cassie. – É a regra.

– Desculpe. Prometo que vou fazer isso de agora em diante. – Cassie pediu desculpas. Ela receava que Antoinette elevasse a regra quebrada para uma discussão, mas ao invés disso ela voltou-se para o seu caderno, escrevendo mais algumas palavras antes de fechá-lo.

– Está terminando a lição de casa? – Cassie perguntou, surpresa porque Antoinette não parecia uma pessoa que postergava as coisas para o último minuto. Seu quarto era imaculado. As roupas das quais se despira antes estavam dobradas no cesto de roupas sujas, e sua mochila da escola, bem arrumada, estava debaixo de uma escrivaninha branca perfeitamente ordenada.

Perguntou-se se Antoinette sentia que faltava controle em sua vida, e estava tentando exercê-lo em seu ambiente imediato. Ou talvez, já que a garota de cabelos escuros tinha deixado claro que ressentia a presença de uma au pair, estivesse tentando provar que não precisava de ninguém para cuidar dela.

– Minha lição de casa está feita. Estava escrevendo no meu diário – Antoinette lhe contou.

– Você faz isso toda noite?

– Faço quando estou com raiva. – Ela colocou a tampa de volta em sua caneta.

– Sinto muito pelo que aconteceu hoje à noite – Cassie simpatizou, sentindo como se estivesse pisando em gelo que podia se estilhaçar a qualquer momento.

– Margot me odeia e eu a odeio – Antoinette disse, sua voz ligeiramente trêmula.

– Não, não acho que isso seja verdade – Cassie protestou, mas Antoinette sacudiu a cabeça.

– É verdade. Eu a odeio. Queria que ela estivesse morta. Ela já disse coisas assim antes. Fico tão brava que poderia matá-la.

Cassie a encarou, chocada.

NГЈo eram apenas as palavras de Antoinette, mas a forma calma em que as dissera que a gelava. NГЈo tinha ideia de como deveria responder. SerГЎ que era normal para uma menina de doze anos ter esses pensamentos homicidas? Antoinette certamente deveria ser ajudada a administrar essa raiva por alguГ©m melhor qualificado. Um conselheiro, um psicГіlogo, atГ© mesmo um padre da parГіquia.

Bem, na ausГЄncia de alguГ©m competente, ela supГґs que era a Гєnica disponГ­vel.

Cassie peneirou as próprias memórias, tentando se lembrar do que tinha dito e feito naquela idade. Como tinha reagido e se sentido quando sua própria situação havia espiralado para fora de controle. Ela já tinha desejado matar alguém?

Lembrou-se, de repente, de uma das namoradas de seu pai, Elaine, uma loira de unhas longas e vermelhas, e uma risada alta e estridente. Elas tinham se odiado Г  primeira vista. Durante os seis meses em que Elaine estivera em cena, Cassie havia a detestado com veemГЄncia. NГЈo conseguia se lembrar de desejar sua morte, mas definitivamente desejara que ela fosse embora.

Provavelmente, isto era a mesma coisa. Antoinette apenas estava sendo mais sincera, sГі isso.

– O que Margot disse não foi justo, nem um pouco – Cassie concordou, porque não tinha sido. – Mas as pessoas dizem coisas na raiva que não querem dizer.

Г‰ claro, as pessoas tambГ©m expunham a verdade quando estavam com raiva, mas ela nГЈo seguiria por esse caminho.

– Ah, mas ela quis dizer aquilo – Antoinette garantiu. Ela mexia na caneta com inquietação, retorcendo a tampa violentamente de um lado para o outro. – E papai sempre fica do lado dela agora. Ele pensa só nela e nunca em nós. Era diferente quando minha mãe estava viva.

Cassie assentiu, com empatia. Esta tambГ©m era sua experiГЄncia.

– Eu sei – ela disse.

– Como você sabe? – Antoinette olhou para ela com curiosidade.

– Minha mãe morreu quando eu era nova. Meu pai também trouxe namoradas novas – er, quero dizer, uma noiva nova – para casa. Causou muitos confrontos e hostilidade. Elas não gostavam de mim, eu não gostava delas. Felizmente, eu tinha uma irmã mais velha.

Apressadamente, Cassie se corrigiu novamente.

– Eu tenho uma irmã mais velha, Jacqui. Ela enfrentava meu pai e ajudava a me proteger quando havia brigas.

Antoinette assentiu, concordando.

– Você ficou do meu lado hoje. Ninguém fez isso antes. Obrigada por fazer aquilo.

Ela encarou Cassie, seus olhos largos e azuis, e Cassie sentiu um caroço em sua garganta com a inesperada gratidão.

– É para isso que estou aqui – disse.

– Desculpe por ter te falado para andar pela urtiga – ela olhou para os vergões nas mãos de Cassie, ainda inchados e inflamados.

– Realmente não tem problema. Entendo que foi uma brincadeira. – Lágrimas inundavam seus olhos agora, empatia brotando dentro dela. Não tinha esperado que Antoinette baixasse sua guarda. Entendia exatamente quão solitária ela deveria se sentir, e vulnerável. Era terrível pensar que Antoinette sofrera abuso verbal de Margot anteriormente sem ninguém para protegê-la, e com seu pai deliberadamente ficando contra ela.

Bem, ela tinha alguém agora – Cassie estava do lado dela e a apoiaria não importa o que custasse. O dia não havia sido um completo desastre se significasse que ela conseguira se aproximar dessa criança complexa e perturbada.

– Tente dormir agora. Tenho certeza que as coisas vão estar melhores pela manhã.

– Espero que sim. Boa noite, Cassie.

Cassie fechou a porta e fungou violentamente, limpando o nariz na manga. Exaustão e emoção a dominavam. Apressou-se pelo corredor, pegou seu pijama e foi para o banho.

Debaixo do jato de ГЎgua fumegante, finalmente permitiu que suas lГЎgrimas corressem.



*



Apesar de a água quente ter acalmado suas emoções, Cassie logo percebeu que havia causado que sua pele chamejasse novamente. As feridas de urtiga começaram a coçar insuportavelmente. Esfregou-se com a toalha, tentando cessar a coceira, mas só teve sucesso em espalhá-la.

Depois de subir na cama, descobriu que estava tão desconfortável que não conseguia dormir. Seu rosto e braços latejavam e queimavam. Coçar oferecia um alívio apenas temporário e, na verdade, piorava a dor.

Depois do que pareceram horas tentando, sem sucesso, forçar-se a dormir, Cassie admitiu derrota. Precisava de algo para acalmar sua pele. O armário no banheiro abrigava apenas os essenciais básicos, mas ela tinha visto um gabinete amplo no banheiro depois do quarto de Ella. Talvez houvesse algo lá que pudesse ajudar.

Caminhou silenciosamente atГ© o banheiro e abriu o gabinete de madeira, aliviada ao ver que estava cheio de tubos e frascos. Deveria ter algo para alergias. Leu os rГіtulos com dificuldade com o francГЄs complicado, apreensiva porque aplicar o remГ©dio errado poderia piorar as coisas ainda mais.

Loção de calamina. Ela reconheceu a cor e o cheiro, apesar do rótulo ser desconhecido. Isso acalmaria sua pele.

Despejando um pouco sobre sua mГЈo em concha, Cassie a espalhou sobre suas queimaduras. Imediatamente sentiu o alГ­vio gelado. Devolveu o frasco e fechou o gabinete.




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